BRASÍLIA, DF, E RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS)
Quando conheceu Arthur, a professora de artes marciais Luiza era sócia de uma escola e dava aulas particulares. Pagava o aluguel e cuidava do filho, Pedro, e da mãe, que sofria com problemas no estômago.
Arthur logo se ofereceu para incluir a sogra em seu plano de saúde, que dava direito aos melhores hospitais da cidade. Também passou a bancar o colégio de Pedro.
Foram morar juntos, e o empresário convenceu Luiza de que não valia a pena manter a sociedade e as aulas particulares, porque o dinheiro gasto com babá “não compensava”. Era melhor que ela ficasse em casa cuidando da criança que ele arcaria com as contas.
Sem renda própria, Luiza ficou sujeita às alterações de humor do parceiro. “Quando eu pedia dinheiro para as contas da minha mãe, que estava muito doente, ele dizia que não era obrigado a sustentar ninguém. Parou de pagar o plano de saúde, e ela, precisando de cirurgia, quase foi expulsa do hospital”, conta à reportagem.
Os nomes usados para contar esta história são fictícios, mas a violência patrimonial, nome da agressão a que Luiza foi submetida, é real e prevista na Lei Maria da Penha.
A legislação a define assim: “Conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades”.
Segundo dados do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, foram recebidas 2.995 denúncias de crimes contra a segurança financeira com vítimas do sexo feminino em 2020.
O número é baixo se comparado, por exemplo, às denúncias de violência psicológica divulgadas pela pasta, 106,6 mil. A advogada Melissa Santana, do projeto Não Era Amor, que ajuda mulheres em relacionamentos abusivos, afirma que o baixo número de casos se deve mais ao desconhecimento do que à raridade da violência.
“Há muita subnotificação, até porque muitas vezes a violência psicológica vem atrelada à patrimonial”, afirma. Ela diz que muitas mulheres sequer se veem como alvos de violência. “Ainda existe uma cultura muito forte de que o homem pode, sim, controlar o dinheiro da família.”
O sinal de alerta costuma vir apenas quando a agressão se torna recorrente ou quando está associada à violência mais explícita. “Quando um homem joga o celular da mulher na parede, ela se sente violentada não pelo aparelho, mas porque se assusta de estar com um homem que seria capaz de um ato agressivo desses”, diz Isabela Del Monde, advogada feminista e Fundadora da Gema Consultoria em Equidade.
Casos recorrentes na Defensoria Pública do Rio de Janeiro –quadro que se repete Brasil afora– são o de homens que destroem fisicamente o meio de trabalho da companheira, forçando-a a depender economicamente dele.
“Vidro de esmalte, alicate de cutícula… Teve um sujeito que quebrou toda a carrocinha de cachorro-quente da mulher, e ela não pôde trabalhar”, diz Flavia Nascimento, coordenadora de Defesa dos Direitos da Mulher do órgão.
Sem autonomia, Luiza passou a se sentir presa a Arthur, que se incomodava com o tempo que ela passava com a mãe.
Quando a sogra passou por uma cirurgia em outra cidade, Arthur pressionou a mulher a não viajar para ficar com ela –mesmo que ele próprio fosse deixar a cidade a negócios naquele dia. “Quando ele estava no avião, minha mãe morreu. E eu não estava lá. E sinto que só pude ir ao velório porque ele estava longe.”
Outra agressão que a Defensoria do Rio propõe incluir como acossamento patrimonial é quando o ex não paga pensão alimentícia, ferindo a independência financeira da mãe de seus filhos. As especialistas ouvidas também afirmam que a subtração de benefícios sociais, como o auxílio-emergencial, também é uma violência.
Em 2020, o jornal Folha de S.Paulo contou a história de mães solo que perderam o dinheiro porque os pais de seus filhos usaram o CPF das crianças para abocanhar para si os R$ 1.200 que elas tinham direito de receber.
Outro complicador para casos como o da vendedora de cachorro-quente: a Justiça desconsidera que cônjuges possam se agredir financeiramente, porque o patrimônio seria dos dois, explica Melissa Santana.
“Isso é um ponto bem controverso e bem cultural, de que quando o Código Penal foi escrito, em 1940, a mulher era submissa ao homem”, diz a advogada. “Cabe a nós invocar a Maria da Penha e os tratados internacionais para impedir que essa imunidade seja aplicada.”
As mulheres precisam ter uma visão pragmática do relacionamento, recomenda a educadora financeira Amanda Dias, do perfil Grana Preta. Desde o início, devem comprovar que o casal tem união estável, “seja juridicamente ou até mesmo dividindo uma conta, ter testemunhas e provas de que a união de fato aconteceu”.
Dias também acha importante que a mulher tenha um sustento à parte –pode ser revendendo produtos, sugere. O ideal seria juntar um colchão que cobrisse custos essenciais por, no mínimo, seis meses, para não depender do homem caso queira se divorciar.
Luiza teve que pedir socorro a uma amiga quando finalmente deixou Arthur. Saiu de casa com o filho e duas malas, tudo que conseguiu recuperar até hoje de seus bens. “Não tinha R$ 1 para pegar um ônibus”, conta.
E a violência patrimonial pode não se encerrar com o término. Luiza teve o celular cortado e a matrícula escolar do filho rescindida. Não cedeu. E recebeu então uma notificação dos advogados do ex-companheiro cobrando mais de R$ 100 mil por “despesas gastas com ela durante o relacionamento”.
Sem trabalho fixo, passou a viver de favor com uma amiga. O filho teve que ir morar com o pai. “E eu, que aceitei deixar de trabalhar principalmente para poder estar mais com meu filho, acabei tendo que ficar sem ele”, diz, chorando. “Fiquei quase três meses sem vê-lo por causa da pandemia.”
Foto: Reprodução / ANADEP