Até onde se sabe, o primeiro longa-metragem de ficção realizado por uma cineasta negra no Brasil é “Amor Maldito”, de 1984, dirigido por Adélia Sampaio. Só três décadas mais tarde outros filmes de ficção assinados por mulheres negras ganharam distribuição comercial no país.
É o caso de “Café com Canela”, de 2017, que Glenda Nicácio dirigiu lado de Ary Rosa. E agora de “Um Dia com Jerusa”, de Viviane Ferreira, que estreia nesta segunda no catálogo da Netflix.
É uma conquista histórica. Não por acaso, a história está no centro do filme, realizado inicialmente como curta (“O Dia de Jerusa”, 2014, exibido no Festival de Cannes) e refilmado em versão ampliada graças a um edital federal de 2016, que apoiou três longas de baixo orçamento de diretores negros –Ferreira foi a única mulher contemplada.
O roteiro se concentra no dia do aniversário de 77 anos da personagem-título, brilhantemente interpretada por Léa Garcia. Moradora do bairro paulistano do Bexiga, ela aguarda os familiares para um bolo quando recebe a visita inesperada de Sílvia, de Débora Marçal, que faz pesquisas de mercado.
O questionário dá ensejo a um mergulho no emaranhado de histórias coletivas ligadas ao percurso de Jerusa e seus antepassados e despontam lembranças da escravidão, das origens do Bexiga, de carnavais passados…
Jerusa conta que herdou o nome da avó, negra ladina que mantinha no braço a marca do brasão do antigo dono. Ao chegar à cidade vinda de um cafezal, a avó de Jerusa trabalhou como lavadeira às margens do Saracura, córrego atualmente canalizado.
Através de relatos e imagens do passado, bem como de fragmentos do presente das protagonistas em seus trajetos pela região central de São Paulo, a narrativa evoca situações de preconceito, violência policial, luto. Nem por isso amargor e melancolia dão o tom do filme.
O que sobressai é a elegância de Jerusa/Léa Garcia a enfeitar seu bolo de aniversário, o cuidado para abrir forminhas de brigadeiro, os gestos precisos com que arruma a mesa para as visitas. Com alegria, a personagem transmite as memórias de uma família que existiu e existe –algo nada óbvio num contexto em que predominam notícias de lares negros desfeitos, violência, injustiça, precariedade.
As fotografias guardadas no sobrado de Jerusa têm papel fundamental na narrativa. O talento com as lentes, passado de geração a geração, não só contribuiu para provar a existência dessa família negra de classe média mas para afirmar sua vocação artística. Como diz a professora do cursinho de Sílvia logo no início do filme, “ser mulher negra disposta a sonhar é o que há de mais subversivo neste país”.
“Um Dia com Jerusa” é de fato o produto do encontro entre mulheres negras sonhadoras, maioria no elenco e na equipe técnica. Nascida em Salvador em 1985, Viviane Ferreira mudou-se para São Paulo aos 19 anos e estudou cinema e direito. Desde março, dirige a Spcine, empresa municipal de fomento ao desenvolvimento do audiovisual na capital paulista.
A carioca Léa Garcia integrou o Teatro Experimental do Negro, grupo idealizado por Abdias do Nascimento, e atuou em filmes emblemáticos, como “Orfeu Negro”, de 1959, do francês Marcel Camus, e “Ganga Zumba”, de 1963, de Cacá Diegues, em que sua personagem Cipriana é uma espécie de porta-voz da liberdade.
“Um Dia com Jerusa” pode ser visto como um grito de liberdade contra prisões estéticas, como a associação de personagens negros a trajetórias de tristeza e violência.
Quando Jerusa penteia o cabelo crespo de Sílvia, uma herança não consanguínea e imaterial está sendo transmitida. Esse legado envolve a grande família formada pela diretora e seu elenco, mas também por teóricos e poetas negros que povoam sutilmente o longa, como Luiz Gama, Lélia Gonzalez e Adélia Sampaio.
UM DIA COM JERUSA
Quando: A partir desta segunda
Onde: Netflix
Elenco: Léa Garcia, Antonio Pitanga e Débora Marçal
Produção: Brasil, 2020
Direção: Viviane Ferreira
Avaliação: Ótimo