O que antes era chamado de bico, agora tornou-se um empreendimento. O capital inicial? Sua própria força de trabalho e, no máximo, uma moto com a “bag” ou um carrinho popular – que às vezes é alugado.
A uberização do trabalho é o motor do capitalismo tardio. Precariza-se para aumentar os lucros das corporações que imperam sobre a distribuição de bens e serviços, mas que, a fundo, não produzem nada.
Como já disse o célebre pensador e geográfico brasileiro, Milton Santos, a urbanização se dá com base em dois circuitos da economia: o superior e o inferior.
O superior tem o capital. O inferior tem o trabalho.
O superior tem acesso a crédito e a ajudas governamentais. O inferior, não.
A uberização do trabalho é a resposta para muitas das questões de desigualdade, exploração e sofrimento que acomete as sociedades do século 21. Neste fio, trazemos o que sabemos sobre a precarização do trabalho moderno.
1. A era do delivery
A expressão master dessa era é o serviço de entrega de comida. É precisamente daí que vem o termo uberização, uma derivação do nome de uma das plataformas de entrega. UberEats, iFood e Rappi são os três aplicativos do gênero com mais downloads tanto na PlayStore, para plataformas com sistema Android (Google), quanto na Appstore, para aparelhos com sistema IOS (Apple). Isso, antes da UberEats fechar suas operações no Brasil, no início de 2022.
Essas plataformas mudaram a relação que a gente tem com a comida. O ato de preparar as próprias refeições e sentar-se à mesa com amigos e família vem sendo substituído por uma navegação na tela e poucos cliques, numa relação distante e fria entre quem come e quem produz. É o que querem iFood e companhia: o celular, perto, e a cozinha, longe.
Esse argumento de facilidade só é possível porque envolve um custo que nem sempre está visível: o do trabalho. Para que milhões de pessoas tenham uma refeição em casa, além dos funcionários do restaurante, um entregador terá de percorrer o mais velozmente possível o trajeto até o destino.
Apesar de precisar de gente de carne e osso pra existir, as plataformas compõem o que pesquisadores chamam de ambiente alimentar digital, ou seja, o espaço virtual em que somos influenciados a fazer escolhas sobre o que a gente come. Isso vale para os aplicativos em si, mas também redes sociais, mensagens de texto e anúncios no geral. A pandemia de Covid-19 acabou maximizando essa relação com o digital, e as plataformas surfaram direitinho essa onda, colocando restaurantes, bares, lanchonetes e demais comércios reféns desse intermédio.
2. Sem direitos, mas com muita vigilância: empreendendo a si mesmo
Para que a exploração obtenha êxito, é preciso convencer os explorados de que eles não são explorados. Por isso, o empenho, o mérito, a força de vontade e o “só não trabalha quem não quer” são pontos trabalhados nos argumentos, para convencer o entregador de que ele está em um empreendimento, no qual o capital inicial é seu próprio corpo e o giro é sua própria saúde – física e mental.
O imperativo é a rapidez. Tem que ser ágil para fazer o maior número de entregas possível e, assim, não sair no prejuízo no fim do dia. As condições laborais são das piores: falta todo tipo de direito. Sem alimentação, sem nenhuma garantia de remuneração em casos de acidentes durante o trabalho, às vezes, sem acesso à água e banheiro. Isso, sem mencionar licença-maternidade e paternidade, décimo terceiro, auxílio doença… Não há qualquer vínculo formal que obrigue as plataformas a se responsabilizarem pelas vidas de seus funcionários.
Não só existe omissão, como também ameaças. A coerção das plataformas, por meio de segurança terceirizada, foi registrada pelo repórter Marcos Hermanson em meio à pandemia. Entregadores foram ameaçados com uma arma de fogo enquanto tentavam arrumar bicicletas para trabalhar. A negligência também pode matar. E matou, como foi o caso do entregador Thiago de Jesus Dias, que faleceu um dia depois de sofrer um AVC e ter o pedido de ajuda ignorado pela Rappi.
São trabalhadores invisíveis: as vítimas dos epidêmicos aplicativos de entrega.