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Quando o conhecimento é arma

Criada por Mc Marechal, Batalha do Conhecimento transformou a vida de jovens periféricos educando pelo rap.

Reportagem: Edilana Damasceno     Arte: Marcos de Lima     Edição: Fred DiGiacomo

“Uma incubadora, para todo mundo estar vibrando na mesma frequência e não se sentir mais sozinho”. Assim foi definida a Batalha do Conhecimento (BDC) pelo MC Sant, 27, cuja música “Favela Vive” (Cypher) – parceria com ADL, Raillow & Froid) – conta com mais de 32 milhões de visualizações no Youtube.

Estamos no Rio de Janeiro, faz calor, o ano é 2005. Os elementos não são caros ou raros: 40 segundos, dois MC’ s, uma batida, um microfone, um quadro com algumas palavras e um público majoritariamente jovem. Parece pouco, mas foi o necessário para construir um dos movimentos culturais mais importantes da cena do rap nacional. Através da idealização da Batalha do Conhecimento (BDC), o lendário MC Marechal, 39, provou que não é só nas escolas que saberes são produzidos e que o rap é capaz de colocar milhares de pessoas dentro de um museu.

A cultura hip hop, declarada patrimônio cultural imaterial do estado do Rio de Janeiro (berço da BDC) pela lei 7837/18, é o pilar que constrói diversos movimentos culturais pelo Brasil. Eventos, como o Slam BR – Campeonato Brasileiro de Poesia Falada, a Batalha da Dominação e até mesmo as Batalhas de Sangue que são mais popularizadas, fortalecem a auto-estima dos jovens negros e periféricos, informam sobre questões políticas e identitárias e estimulam o mergulho na literatura e nas artes.

Em entrevista para data_labe, MC Sant, que desde 2014 é mestre de cerimônias (MC) e um dos organizadores da BDC, conta que o ambiente acolhia a todos, “Mesmo que você seja um playboy você vai conseguir tirar uma parada e se for um cara favelado também. [Mesmo que você seja] cheio de revolta, cheio de neurose, você vai conseguir se sentir à vontade”. Segundo Sant, as batalhas chegavam a reunir até 2000 jovens em um único evento.

Rap no museu

O formato da Batalha do Conhecimento difere das batalhas de rima, berço de grandes nomes do rap nacional como Emicida e Max B.O., porque o objetivo não é construir rimas com base em ataques aos adversários e, sim, em temas propositivos pré-definidos. O público escreve diversas palavras em um quadro e o MC precisa rimar em cima delas, acompanhado de um beat, dentro de 40 segundos. As palavras escolhidas iam de “feminicídio” e “lgbtfobia” a “lealdade” e “honra”. Como característica do evento, muitas questões sociais e reflexões eram abordadas dentro das rimas.

Sant, que foi um dos artistas do selo músical #VVAR, criado por MC Marechal, ressalta que o maior objetivo do projeto era fazer as pessoas estudarem: “A gente pode questionar, ter novas ideias com pessoas que também vão gerar isso, porque nas temáticas ali, cada um coloca um tema e as pessoas que vão rimar sobre ele vão dar a perspectiva delas”.

“A Batalha do Conhecimento colocou o rap no lugar onde o rap supostamente não deveria estar, que é um museu de arte no Rio, patrocinado por grandes empresas”, conta Morcego, 25, rapper caxiense que foi campeão em três das sete vezes em que batalhou. Ele ressalta a importância da batalha no acesso à cultura para o povo periférico principalmente por ser realizada em um museu, o Museu de Arte do Rio (MAR), local onde muitas vezes não se tinha oportunidades de se estar, além dos shows gratuitos que aconteciam no evento. “Poder saber melhor as coisas que estão acontecendo, seja da educação, seja sobre racismo, seja sobre feminismo… Eu tinha que ter uma ideia ‘cosmopolita’, tá ligado?”, diz Morcego. Ele define a época das batalhas como uma das melhores da sua vida e ressalta a oportunidade que teve em representar sua cidade que por muitas vezes era apagada culturalmente: “Não tinha ninguém em Caxias (RJ) que representasse o rap. Aí, pude ver a galera sair de Caxias, ir pra batalha e falar: ‘pô, representou, falou de nós’.”

Entenda as rimas que ensinam

“O objetivo maior do Marechal sempre foi de que as pessoas estudassem”

Além da competição, Marechal, que é fundador do influente grupo de rap fluminense Quinto Andar (1999 – 2005), também é autor de outras ações culturais.

Uma delas é o Projeto Livrar, que consiste na distribuição gratuita de livros nos shows do rapper e que passou a integrar a Batalha do Conhecimento. Além das batalhas, o público assistia a shows de rap e tinha a oportunidade de receber livros gratuitamente. Sant diz que o objetivo de Marechal sempre foi que as pessoas estudassem.

“A galera sempre ia na na exposição [do Museu] que tava rolando no mês, subia lá antes da batalha acontecer, pegava alguma ideia na exposição para escrever no quadro, ou levava essa visão pra casa assim. Essa era a visão do Marechal mesmo, da galera poder estudar junto”, diz MC Sant, rapper.

Para Flavya Martins, 25, professora e mestranda na área de sociologia e antropologia, que pesquisa as batalhas de rap, a BDC remete ao conceito de que a educação não deve ser um processo unilateral, abordado por Paulo Freire.

A professora também ressalta como os saberes apresentados nas batalhas chamam a atenção para o fato de que existem outros modos de expressão e ensino: “A gente precisa entender que o modo de se expressar do outro não é o nosso modo de se expressar”.

A professora explica que as batalhas acabam sendo mais atrativas para alguns jovens do que os ambientes formais de estudo por oferecerem uma escuta melhor e serem mais acolhedoras. Além disso, a identificação – principalmente por pessoas negras e periféricas- faz com que o letramento e a concepção de identidade sejam encontrados nelas.

Para Flavya, esses espaços podem ser não apenas complementos para as aulas formais, mas inspiração:

“Quando eu tô na batalha de rap e eu vejo pessoas falando sobre temas que eu poderia muito bem abordar em uma aula, por mais que eu tenha formação de professora, eu estou aprendendo muito mais com essa pessoa hoje. Esse aprendizado da expressão do outro, de como o outro vê o mundo, para mim, é extremamente relevante pra eu conseguir dar uma aula para uma pessoa que vê o mundo de uma forma diferente”.

Conhecimento e inclusão para todes

MC Winnit precisou trabalhar rimando no metrô de São Paulo em busca do dinheiro necessário para vir ao Rio de Janeiro participar da Batalha do Conhecimento de 2019, no Campo de Santana.

“A primeira coisa que eu vi foi uma biblioteca aberta, eu via muitas crianças, muitos jovens e adolescentes nesses ambientes, eu pensei, nossa, que parada da hora”. O jovem diz que o cenário cultural do Rio se diferencia muito nesse aspecto e que ações como a BDC deveriam servir de inspiração para outros estados. “Pude ver que a Batalha do Conhecimento não girava só em torno da batalha, mas, sim, no conhecimento geral”

Além de carregar consigo a lírica vencedora da Batalha do Conhecimento de 2019, MC Winnit lida com as questões que envolvem ser um homem trans e negro na cena do rap. “Eu nunca procuro implementar essa questão de gênero nas minhas rimas, acho que a minha presença fala sobre o gênero por si só”, diz Winnit.

Durante sua participação no evento ele trouxe o conceito de equilíbrio de gênero em suas rimas, foi aclamado pelo público e se surpreendeu: “Depois que acabou a batalha, as pessoas falavam comigo, me abraçaram. Até falaram: ‘mano, essa rima aí me ajudou’, então, poder trabalhar essa questão de gênero, que é uma coisa que eu mesmo tenho muita dificuldade dentro do meio do hip-hop, foi muito incrível”. Winnit descreve a experiência da batalha e do acolhimento como surreal e diz que ela foi essencial para desenvolver seu amor pelo estado do Rio, conhecendo-o através da cultura: “A gente nunca tá preparado pra poder conhecer uma cidade, até a gente ter que abrir a boca pra ela”.

A origem das batalhas

Basta uma busca por “batalha de rima” ou “batalha de rap”, no Youtube, para você encontrar milhares de vídeos, com centenas de milhares de visualizações, de MCs, em todo o Brasil, disputando rinhas aguerridas de tretas versadas.

As batalhas de rap (ou “battle rap”, no original em inglês) começaram nos EUA, no início dos anos 80, na Costa Leste, e se espalharam pelo país com a popularização do estilo.

“Duloco 99 foi o 1º festival de Hip Hop do Brasil. [Aconteceu nos] dias 6, 7 e 8 de agosto de 99, nos Sescs Itaquera e Belenzinho, em São Paulo. Foi a primeira vez que se teve notícia de uma batalha de MCs no Brasil.”, relembra o rapper e apresentador Max. B.O., um dos maiores nomes do freestyle no Brasil e curador do projeto Jardim do Flow. “Batalharam eu, Kamau, Napoli, Akin, Black Alien, Marechal, Rossi, devo estar esquecendo alguém?”

Em 2002, o filme “8 Mile – Rua das ilusões”, estrelado por Eminem e vencedor do Oscar de melhor canção original, popularizou as batalhas ao redor do mundo. Em 2003, surgiu a “Batalha do Real”, no Rio de Janeiro. Em São Paulo, uma das batalhas mais tradicionais é a “Batalha da Santa Cruz”, que revelou ninguém menos que Emicida, um dos mais populares artistas do Brasil.

Acesse o site do Data Labe.

O data_labe é um laboratório de dados e narrativas na favela da Maré – Rio de Janeiro. No centro dos projetos desenvolvidos está a questão do imaginário construído sobre a cidade e seus habitantes. O laboratório nasceu em 2015 nas dependências do Observatório de Favelas, em parceria com a Escola de Dados, e hoje se estabelece como organização autônoma e autogerida. As ações estão organizadas em três eixos: jornalismo; formação; e monitoramento e geração cidadã de dados.