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PL contra casamento homoafetivo tem chance remota de aprovação, dizem juristas

Por Jess Carvalho para Agência Diadorim

O arquivista Haroldo Souza, 41, e o editor de texto Marcelo Nardeli, 34, se casaram no início do mandato do ex-presidente Jair Bolsonaro (sem partido), em 2019, com medo de perderem esse direito. A relação já somava dez anos quando eles decidiram formalizar a união perante o Estado. 

“O nosso receio era acontecer alguma coisa com um e o outro ficar desamparado, tendo que entrar na justiça para provar que a gente é uma família, que a gente já tinha uma década de convivência. Com o casamento os nossos direitos ficaram preservados”, fala Souza, referindo-se a direitos sobre o patrimônio que construíram juntos mas também à dignidade de serem reconhecidos como cônjuges diante de um internamento hospitalar, por exemplo. 

A jornalista Daniela Arrais e a médica Laura Della Negra, ambas de 40 anos, também se casaram nesse contexto, ainda em 2018. “Laura fez o pedido de casamento no Carnaval daquele mesmo ano, mas a gente não tinha planejado como ia fazer. Depois do resultado das eleições [em que Bolsonaro foi eleito], ficamos com muito medo e resolvemos garantir o nosso direito”, relembra Arrais. Nas fotos da cerimônia as noivas aparecem sorridentes e vestidas de vermelho como ato de resistência. 

O primeiro filho do casal, Martín, nasceu três anos depois e foi registrado com os nomes de ambas as mães. Hoje, com a possibilidade de proibição do casamento homoafetivo em pauta no Brasil, elas se dizem preocupadas. “Geralmente não se mexe em direito adquirido. Se esse projeto for para frente, ele não tem poder, até onde eu saiba, de anular casamentos que já existem, então isso dá um alívio. Ao mesmo tempo, é impossível não pensar no que está acontecendo na Itália, nesse retrocesso gigante da extrema direita fundamentalista querendo tirar nomes de mães não gestantes do registro de nascimento de crianças”, diz Daniela Arrais.

A jornalista se refere a uma lei sancionada pela primeira-ministra italiana Giorgia Meloni, em julho de 2023, em Pádua, Norte da Itália, que determinou a retirada do nome de mães “não biológicas” da certidão de nascimento de seus filhos, afetando ao menos 33 famílias chefiadas por duas mulheres. 

De acordo com o advogado Renan Quinalha, professor de Direito da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), a jornalista está correta. Caso o projeto de autoria do ex-deputado Clodovil Hernandes (PTC-SP), agora sob relatoria do pastor Eurico (PL-PE), que visa proibir o casamento homoafetivo no Brasil, seja aprovado, as uniões já celebradas seguem garantidas. “Provavelmente os legisladores teriam que colocar uma cláusula de modulação em relação ao direito que já havia sido assegurado até o momento da aprovação. É muito difícil que se retroaja uma restrição de direitos. Eu diria que é praticamente impossível.”

No entanto, os efeitos seriam avassaladores para a população LGBTQIA+ – como já têm sido, sobretudo por causa dos discursos de ódio inflamados por esse projeto de lei. “Essa discussão passa a mensagem de que pessoas LGBTQIA+ não têm direitos, não fazem parte da sociedade, não têm família, e isso fortalece a LGBTfobia”, desabafa Souza.

“É difícil a gente não se sentir ameaçada ao ouvir que somos aberrações, que nossas famílias não deveriam existir, então o meu medo maior é da onda de preconceito, e do que isso pode acarretar para a minha família, para o meu filho, isso deixa a gente muito vulnerável”, fala Arrais. 

A jornalista Daniela Arrais e a médica Laura Della Negra se casaram em 2018Foto: Acervo pessoal

Omissão do Legislativo

Diadorim ouviu três advogados especialistas em direitos humanos e todos disseram que é de competência do Congresso Nacional legislar sobre o casamento homoafetivo no Brasil, mas é justamente por conta da omissão do Legislativo que o direito está ameaçado.

Em 2011, o STF (Supremo Tribunal Federal) supriu essa lacuna ao decidir que uniões homoafetivas deveriam ser equiparadas a uniões entre homens e mulheres – decisão posteriormente referendada pela Resolução n. 175/2013 do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), que obrigou os cartórios a realizarem “casamentos entre pessoas de mesmo sexo”. 

Desde então, o número de casamentos homoafetivos quadruplicou no Brasil, conforme apontam dados da Arpen (Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais). Se em 2013 foram realizadas 3,7 mil celebrações, em 2022 foram 12.987. Em média, 7,6 mil casais homoafetivos têm seu casamento reconhecido pelo Estado anualmente.

Porém, mais de uma década se passou sem que a decisão do Judiciário fosse afirmada pelo Legislativo. A advogada Luanda Pires, presidenta da ABMLBTI (Associação Brasileira de Mulheres Lésbicas, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos), lamenta que, ao finalmente decidirem retomar as discussões sobre o casamento homoafetivo, os deputados o façam para “retirar direitos que já foram reconhecidos e incorporados à sociedade”.

“Enquanto não for aprovada a lei regulamentando e reconhecendo esse direito nós poderemos sofrer esse tipo de atentado novamente”, explica a especialista. 

Segundo o advogado especialista em direitos humanos Marcel Jeronymo, a morosidade tem a ver com a falta de representatividade nas casas legislativas. “A gente ainda precisa ter mais LGBTs e pessoas aliadas eleitas no Congresso Nacional”, aponta.

Em sua visão, é por isso que projetos já apresentados no Congresso Nacional, como é o caso do Estatuto da Diversidade Sexual e de Gênero, que busca assegurar o direito ao casamento homoafetivo, seguem em tramitação, sem serem aprovados.

Chances remotas de aprovação

A expectativa é que o PL contra o casamento homoafetivo seja votado nesta quarta-feira (27) na Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família da Câmara dos Deputados. Porém, as chances de se tornar lei são remotas, conforme analisam os especialistas entrevistados pela Diadorim. O motivo é a flagrante inconstitucionalidade da matéria.

“O PL fere os preceitos fundamentais da não discriminação; da dignidade da pessoa humana; o direito à intimidade, que garante que ninguém deve sofrer interferência em sua vida privada, na sua família, no seu lar, que são ambientes constitucionalmente invioláveis; o direito de proteção à família, que garante que toda e qualquer pessoa civilmente capaz possa contrair um matrimônio e formar sua família de acordo com sua vontade; além de diversos tratados e convenções internacionais que o Brasil ratificou”, cita a advogada Luanda Pires.

Na última sexta-feira (22), o Ministério Público Federal, por meio da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, enviou nota à Câmara pedindo a rejeição e o arquivamento da matéria, reforçando seu caráter discriminatório e inconstitucional.

“Uma eventual aprovação desse projeto não significa apenas o Estado assumir que existe um modelo correto de casamento e que este modelo seria o heterossexual. Significa também dizer que o Estado reconhece as pessoas não heteronormativas como cidadãs e cidadãos de segunda classe, que não podem exercitar todos os seus direitos, em função de sua orientação sexual”, escreveu o órgão.

De forma prática, para que fosse aprovado, primeiro o PL teria que correr as comissões da Câmara até chegar ao plenário. “Se aprovado na Câmara dos Deputados, ele teria que ser aprovado no Senado Federal, onde a gente acredita que não deve passar”, avalia o advogado Marcel Jeronymo. 

Se fosse aprovada pelo Senado, a lei teria que ser sancionada por Lula. “Muito provavelmente haveria um veto presidencial, considerando que a base do governo não tem apoiado essa proposta, que foi articulada pela oposição”, diz o advogado Renan Quinalha. 

Caso fosse sancionada por Lula, a constitucionalidade da lei poderia ser discutida pelo STF, que já formou maioria no entendimento de que uniões homoafetivas constituem entidade familiar e merecem proteção. “Considerando a composição de hoje do Supremo, muito provavelmente a posição seria de declarar a inconstitucionalidade da lei”, fala Quinalha. 

Por fim, mesmo que o Supremo Tribunal Federal assentisse a essa violação dos direitos das pessoas LGBTQIA+, a Corte Interamericana de Direitos Humanos poderia ser acionada.

Proteção ao casamento

O advogado Renan Quinalha chama a atenção para o caráter moralizante do projeto de lei, cujo texto apela para a “não naturalidade” das uniões homoafetivas. “Aprovar o casamento homossexual é negar a maneira pela qual todos os homens nascem neste mundo, e, também, é atentar contra a existência da própria espécie humana”, afirma a matéria.

Na visão do professor da Unifesp, o que o pastor Eurico busca, ao trazer essa pauta à tona, é ampliar sua base de eleitores, considerando que 2024 é ano eleitoral. “Esses setores conservadores fundamentalistas sabem que esse tipo de proposta rende um capital político para eles. Então, isso é resquício do bolsonarismo que está presente nas instituições do Estado brasileiro, inclusive a Câmara dos Deputados com essa iniciativa.”

Diante desse contexto, a jornalista Daniela Arrais convida a sociedade em geral a somar forças às pessoas LGBTQIA+ na defesa de seus direitos. Ela faz parte do Coletivo Dupla Maternidade, que reúne mais de 800 pessoas interessadas em mostrar que uniões entre pessoas do mesmo gênero são absolutamente normais, legítimas e amorosas.

“A gente vê como é importante essa força, esse lugar de pertencimento, de identificação, de troca de informação, de acolhimento. E a gente decidiu fazer um vídeo falando sobre casamento igualitário, reunindo mais de 100 fotos, trazendo essa pluralidade de famílias para mostrar que a gente não só existe como as nossas famílias estão no mundo. Eu acho que, para muita gente, a gente parece o outro, a gente parece distante”, observa. 

Em um dia, o vídeo, originalmente publicado no perfil de Instagram do Coletivo, já somava mais de 500 mil visualizações. “Nosso objetivo é produzir conteúdo para que outras pessoas, principalmente famílias que são diferentes das nossas, nos conheçam e ajudem a nos proteger também”, finaliza a jornalista.

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