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Musical on-line homenageia Brenda Lee, anjo da guarda das travestis

Musical disponível até 24 de novembro no YouTube homenageia ativista trans que montou casa de acolhimento para a população LGBT+ na década de 1980

Por Jennifer Mendonça

“O repórter perguntou: Brenda, e se aparecer alguma travesti com Aids, o que você vai fazer? Foi quando eu dei uma pausa e falei assim: aproveito para dizer que se tiver alguém com Aids e não tiver lugar para ficar, pode vir aqui para a casa que a gente vai cuidar sem nenhuma discriminação”. Essa foi uma das últimas entrevistas à TV que a ativista trans Brenda Lee, conhecida como anjo da guarda das travestis, deu falando sobre as amigas que foram baleadas na rua e a casa de apoio que abriu em 1984 em São Paulo que acolhia população LGBT+ e também pacientes soropositivos. Mais de 30 anos depois, é possível também ouvir Brenda por meio da atriz Veronica Valenttino, que interpreta a ativista no musical Brenda Lee e o Palácio das Princesas, que estreou em 14 de outubro e permanecerá até 24 de novembro sendo exibido pelo canal no YouTube do grupo Núcleo Experimental, todos os dias das 21h às 0h.

O elenco é formado por seis atrizes travestigêneras: acompanhada de Veronica, estão Tyller Antunes (Ariella del Mare), Ambrosia (Isabelle Labete), Marina Mathey (Cinthia Minelli), June Weymar (Blanche de Niège) e Olivia Lopes (Raíssa) que interpretam algumas das que passaram pela casa de apoio e um ator cisgênero Fábio Redkowicz que dá vida a um médico que prestou atendimento aos pacientes. A direção geral é de Zé Henrique de Paula e a musical é de Fernanda Maia.

No espetáculo, a história de Brenda, que aos 14 anos deixou o estado do Pernambuco para tentar a vida em São Paulo fugida de casa, é contada a partir do momento em que a ativista começou, de maneira informal, a acolher a população trans numa época em que a violência era institucionalizada pela Operação Tarântula, em que a polícia usava o pretexto de combate à epidemia da Aids para prender e torturar. “A Brenda, em especial, me cativou pela humanidade, pela generosidade de abrir mão de sonhos pessoais, como o projeto do Palácio das Princesas porque ela queria uma casa luxuosa, para acolher num momento de epidemia da Aids, num momento em que o HIV chegou no Brasil e era tido e lido como peste gay, o que fortificou o preconceito e legitimou a rejeição dos nossos corpos para a sociedade que sempre nos viu de forma marginal e nunca acreditou que podíamos ser gente”, explica Veronica.

A ativista acabou morrendo cedo, aos 48 anos, ao ser brutalmente assassinada em 1996 por um ex-funcionário e o seu irmão, que era policial militar, quando ele tentou um golpe para conseguir dinheiro da casa. O espaço chegou a ser reaberto em 2016, mas voltou a ser fechado por falta de verbas. “O fato de termos hoje remédios gratuitos pelo SUS foi uma conquista daquela época também de Brenda Lee, também dos médicos da época. As pessoas usufruem desses resultados mas não conhecem a história porque foi apagada por ser uma travesti.”

Em entrevista à Ponte, a atriz e cantora Veronica Valenttino fala sobre o espetáculo, sua história e muito mais do que representatividade em produções artísticas. “É sobre reconhecer a nossa humanidade e que somos capazes como todos os cisgêneros de executarmos com excelência um trabalho. Essa falsa inclusão que acontece ainda é quebrada quando a proporcionalidade vem na frente”, enfatiza.

Confira a entrevista:

Ponte – Primeiramente, eu gostaria de saber um pouco da sua história até ser intérprete da Brenda.

Veronica Valenttino – Sou nordestina, sou do Ceará, sou atriz, me formei em Artes Cênicas, trabalho junto de um coletivo LGBTQIA+, porque não tem só meninas trans, mas existem bichas, drags e a gente faz um trabalho tanto no teatro como na música, no audiovisual. Esse coletivo [As Travestidas] nasceu há 15 anos sob a direção [do ator] Silvero Pereira, que é um amigo querido, e vim daí. Dentro desse projeto, eu desenvolvi um trabalho um musical e formei minha banda de rock n’ roll chamada Veronica Decide Morrer e estamos há 11 anos juntas. Esse trabalho musical me fez querer vir para o sudeste, participar da cena daqui porque, querendo ou não, aqui [em São Paulo] as oportunidades são outras, a visibilidade é maior, todo esse êxodo que a gente faz a fim de expandir aquilo que a gente fez. Quando eu chego em São Paulo, onde estou radicada há seis anos, já comecei a me conectar com figuras do teatro, amigos de Pernambuco. Assim que eu cheguei, entrei em uma peça que eu cantava no final, que é Aquilo que me arrancaram é aquilo que me restou, sob a direção de Biagio Pecorelli, que é um querido amigo de Pernambuco que mora aqui também. Essas relações me foram trazendo de novo para o lugar do teatro. No finalzinho do ano passado ou no começo deste ano, eu vi a postagem pelas redes sociais da chamada para a audição do espetáculo Brenda Lee e o Palácio das Princesas, que é uma gata que eu já conhecia, e uma das inspirações do meu trabalho de música no rock n’ roll é Claudia Wonder, que é dessa época da Brenda Lee, nos anos 80, que é uma gata travesti, punk de São Paulo, fazia trabalhos incríveis e trabalhou no Teatro Oficina. Eu fiz o teste e passei. Inicialmente, achei que fosse um teste só para as meninas trans de São Paulo, mas se estendeu para o Brasil inteiro. Eu passei, fiquei lisonjeadíssima e mergulhei mais a fundo dentro do trabalho do Núcleo Experimental porque meus contatos com musicais tinham sido muito superficiais, não tinha participado, mas tinha visto no Rio de Janeiro. 

Ponte – E durante a pandemia?

Veronica Valenttino – Essa foi uma oportunidade de poder voltar a atuar porque na pandemia fiz muita coisa online, mas ligada a música. Então os trabalhos de teatro ficaram de fora, o último que fiz foi antes da pandemia, inclusive, no Teatro Oficina, com um grupo de travestigêneras, sob direção de Ave Terra, chamada Segunda Queda, que foi em fevereiroEu estava nessa ânsia, nessa vontade de fazer teatro. Fiz um trabalho de contação de histórias na pandemia e aí veio esse presente que foi participar do musical. Algumas meninas eu já conhecia, como a [Marina] Mathey e a Ambrosia, mas também conhecer outras meninas cantam, atuam e são tão potentes. Ver esse trabalho tomando proporção dentro de um cenário doido porque a gente começou nosso processo de criação do espetáculo em junho. Foi bem difícil e estranho porque, quando a gente fala de criação teatral, a gente precisa de troca real. Foi muito gostoso porque a gente reinventou formas de se aprofundar e de se conectar.

Ponte – E como foi esse envolvimento com as músicas?

Veronica Valenttino – As letras são da Fernanda Maia, que é uma maravilhosa compositora, eu já fiz algumas composições, mas em outros trabalhos. Nesse musical da Brenda Lee, não, as músicas são do Rafa Miranda, que são incríveis. Um dos nossos grandes prazeres como artistas e travestis que somos é como honrar nossa memória, nossa ancestralidade, e Fernanda Maia, no seu texto, e Zé Henrique de Paula na direção, foram figuras extremamente generosas e solícitas a pitacos que a gente tinha. Recentemente saiu uma resenha sobre [o musical] Brenda Lee e uma das coisas que a gente achou desrespeitoso foi usar o nome de batismo dela, que é o dead name, que é o nome morto. O texto [para o roteiro] até tinha essa citação do nome [de batismo] porque nos anos 80 as próprias travestis se colocavam como no gênero masculino, como os travestis, mas os tempos mudaram e a gente sentiu necessidade de modificar isso porque estamos numa luta de direito ao nome, da retificação do nome, do nome social, por isso a gente optou por não revelar o dead name. Quando ela veio para São Paulo, ela veio como Caetana e o nome de guerra dela é Brenda Lee, que ela usava na rua, na batalha diária.

Ponte – O que representa a figura da Brenda Lee na sua trajetória?

Veronica Valenttino – Como nordestina e capricorniana como Brenda Lee, eu sempre admirei figuras subversivas e ousavam romper com qualquer forma sistemática de vida. Assim como Claudia Wonder, como Dzi Croquettes, que é um grupo de teatro que embora não tivesse travestis, foi um dos primeiros grupos na ditadura militar a romper com essa normatividade, colocando homens vestidos de drags, acho que foi nosso primeiro registro. Assim como no rock. E a Brenda, em especial, me cativou pela humanidade, pela generosidade de abrir mão de sonhos pessoais, como o projeto do Palácio das Princesas porque ela queria uma casa luxuosa, para acolher num momento de epidemia da Aids, num momento em que o HIV chegou no Brasil e era tido e lido como peste gay, o que fortificou o preconceito e legitimou a rejeição dos nossos corpos para a sociedade que sempre nos viu de forma marginal e nunca acreditou que podíamos ser gente. Nessa época de ditadura com a Operação Tarântula que perseguia travestis, perseguia profissionais da rua, da noite, os autônomos, que se não tinha carteira de trabalho era preso por vadiagem. 

Espetáculo também aborda a violência policial contra a população trans na década de 1980 e a epidemia da Aids | Foto: reprodução / Brenda Lee e o Palácio das Princesas

A Brenda nesse momento se predispor a acolher e a cuidar dessas meninas, não só das travestis, mas de pessoas cisgêneras [que se reconhecem no corpo que nasceram], tinha gays que não tinham para onde ir para que fossem cuidados, para que não ficassem na rua e passassem fome. Então, esse ato de generosidade dela e essa preocupação afetuosa com a galera do seu nicho é encantador. É um legado lindíssimo que por muito tempo se apagou porque a gente está resgatando uma memória que foi silenciada. Até hoje eu convivo com pessoas soropositivos e se elas conseguem um tratamento gratuito da prefeitura, pouca gente sabe que foi Brenda Lee foi uma das pioneiras, inclusive a formar alianças para lutar por direitos básicos. O fato de termos hoje remédios gratuitos pelo SUS foi uma conquista daquela época também de Brenda Lee, também dos médicos da época. As pessoas usufruem desses resultados mas não conhecem a história porque foi apagada por ser uma travesti. É importante a gente perpetuar o legado dessa mulher.

Ponte – E de lá pra cá, como você enxerga esse legado?

Veronica Valenttino – Primeiramente, eu fico extremamente feliz por colocar meu trabalho, colocar meu corpo, colocar a minha voz em honra a essa ancestralidade de travestis que vieram antes de mim. No entanto, eu também me sinto desconfortável por a gente ainda brigar por coisas tão óbvias. É sobre a humanização dos nossos corpos. Tem uma palavra que eu gosto muito, e dentro desse espetáculo é muito visível, que não é só sobre visibilidade porque visibilidade não vai tirar nenhuma de nós da marginalidade. Também é importante a representatividade, porque a gente brigou por isso e hoje a gente tem representatividade, atrizes trans na Globo, meninas trans na música, nos festivais, no cinema e no teatro. Mas, para além da representatividade, eu acho que o espetáculo é forte e potente porque traz a proporcionalidade. Não é somente uma representante, não é somente uma travesti como totem, de “ah, precisamos ter uma cota”, “precisamos ter uma travesti porque tem que ter”, “hoje em dia tem que ter pelo menos uma travesti no grupo”. Não é dessa forma, a gente tá falando de proporcionalidade, de abrir o espaço, de reconhecer que podemos ser profissionais de teatro, profissionais da música e também travestis.

Muitas vezes, o que nos incomoda é nos colocar primeiramente como travestis e daí vem um espanto ou um olhar “zoologizado” por aquilo que fazemos, como se fosse extraordinário uma travesti cantar, como se fosse extraordinário uma travesti ser boa atriz ou trabalhar com teatro ou dirigir um Uber ou ser gerente de um banco. E não é sobre isso. É sobre reconhecer a nossa humanidade e que somos capazes como todos os cisgêneros de executarmos com excelência um trabalho. Essa falsa inclusão que acontece ainda é quebrada quando a proporcionalidade vem na frente. Quando vem um bonde de seis talentos, seis meninas incríveis, a gente se sente acolhida, por mais que seja um grupo em maioria de pessoas cisgêneras, é um grupo que entrou como aliado nessa luta e que nos possibilitou esse trabalho para que nossa memória não continue sendo apagada.

Ponte – Inclusive, existe essa discussão sobre o “transfake” (quando pessoas cisgêneras interpretam pessoas trans em produções artísticas).

Veronica Valenttino – Sim. É o que eu falo muito: não adianta discutir o “transfake” se a gente não falar da proporcionalidade. Até quando eu, como travesti, vou criticar o “transfake” e continuar fazendo monólogos com a minha equipe de teatro que é toda cisgênera. É incoerente. Eu vou discutir o “transfake” na prática: trazer um diretor travestigênero, homens trans, saca? Essa inclusão, essa proporcionalidade, não falo só na frente da câmera ou dos palcos, mas atrás também. A gente tem profissionais do som, de iluminação, sonoplastas, cenógrafos, figurinistas, um bando de gente talentosíssima, mas que ainda não conseguem chegar a esses espaços. Se eu falar de representatividade montando meu monólogo e falando do “transfake” e com a equipe toda cisgnênera e eu não incluindo outras pessoas trans, vou estar seguindo a moda. É até um recado para essa galera que trabalha com música, com cinema, com teatro: é sobre o nosso lugar. Se eu brigo por representatividade, eu brigo por proporcionalidade. O que puder incluir pessoas trans no trabalho, eu vou incluir, porque o que a gente deixou de trabalhar porque a cisgeneridade nos representava no teatro, porque tinha ator de Malhação fazendo papel de travesti, saca?

Veronica Valettino interpretou ativista trans Brenda Lee, que montou uma casa de acolhimento e apoio a pessoas LGBT+ e foi brutalmente assassinada em 1996, por um antigo funcionário que tentou um golpe e o irmão dele que era policial militar | Foto: Reprodução / Brenda Lee e o Palácio das Princesas

Ponte – Como você enxerga a produção de arte no momento que estamos?

Veronica Valenttino – Eu fico tão triste porque é tudo uma grande questão de sistema. Quem está dentro do mainstream vai continuar com o seu privilégio. Quem está fora da roda, como diria Caio Fernando de Abreu, vai ainda pelejar muito. A gente está com um bom número de visualização do nosso trabalho, por exemplo. Eu acabei de ver um outro musical que voltou a apresentar presencialmente e eu olho a estrutura daquele musical, musical com pessoas pretas no elenco, o que é incrível, mas eu olho a mesma estrutura e não vejo nenhuma travesti e não vejo outros corpos nesse elenco. Eu fico me perguntando: até quando essa galera vai ficar com a mesma panela, saca? Quem é do musical, é do musical, quem não é não vai poder adentrar? A gente veio com Brenda Lee justamente para quebrar essa forma como a cultura vem sendo levada, especialmente nos musicais.

Para mim, é o meu primeiro trabalho propriamente dito musical. Os outros tinham músicas executadas por nós, mas não eram musicais. Esse trabalho nos aproximou de um núcleo muito distante para a gente. A gente olhava, via os musicais, mas não via possibilidade de um dia estar fazendo e hoje a gente já vê. Ao mesmo tempo em que me entristeço, me fortaleço em perceber que estamos modificando [esse cenário], ainda que lentamente. Brenda Lee mostra isso: que a gente vai chegar, vai fazer musical e também vai poder fazer musical também sobre nossas histórias, nossas trajetórias. Nós falando de nós e não mais outros falando de nós da forma deles. Eu acredito que o novo está chegando, essa nova garra de a gente também conquistar outros espaços. Eu acredito na revolução travesti, na arte travesti e na excelência travesti.

Ponte – Você tem outros trabalhos em mente?

Veronica Valenttino – Estou muito feliz com o musical. Em janeiro, eu começo a trabalhar o meu EP, meu disco solo, com dois músicos de Pernambuco. Vou a Fortaleza participar de um festival chamado For Rainbow, que é feito para e por LGBTQIA+, com produções de cinema e teatro. Lá vai ter uma sessão especial de Brenda Lee e o Palácio das Princesas. E depois retorno para São Paulo maturando o meu disco. Dia 20 [de dezembro], faço um show na Praça das Artes, pela Prefeitura de São Paulo, e estou bem feliz com o que está vindo com isso e com as portas que estão se abrindo com esse musical.

Acesse o site da Ponte.

Foto de capa: As atrizes, em sequência: Tyller Antunes (Ariella del Mare), Ambrosia (Isabelle Labete), Veronica Valenttino (Brenda Lee), Marina Mathey (Cinthia Minelli), June Weymar (Blanche de Niège) e Olivia Lopes (Raíssa) | Foto: Ale Catan / Divulgação Núcleo Experimental

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