Por Leanderson Lima para Amazônia Real – Manaus (AM)
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) derrubou a tese do marco temporal, impondo uma nova derrota à bancada ruralista no Congresso e aos invasores e grileiros de terras indígenas. Nesta sexta-feira (20), ele vetou parcialmente o Projeto de Lei (PL) 2903/2023, que tentava restabelecer a data da promulgação da Constituição, 5 de outubro de 1988, como um prazo-limite para que indígenas pudessem reivindicar seus territórios.
A decisão de Lula eliminou os trechos mais polêmicos do PL, que agora voltará para o Congresso (os parlamentares poderão derrubar o veto presidencial). Os parlamentares aprovaram o PL como uma resposta à decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que no dia 27 de setembro sepultou a tese de um marco temporal. No projeto de lei, os congressistas também pleiteavam que os atuais ocupantes dos territórios teriam direito a indenização por benfeitorias, caso a área fosse demarcada como uma nova área indígena. Outro veto é sobre o artigo que liberava o cultivo de transgênicos em TIs.
Os parlamentares tentaram também impor, pelo PL, intervenções históricas em TIs, como a possibilidade de instalação de bases militares, exploração de alternativas energéticas, construção de rodovias, caso fossem consideradas estratégicas, sem o consentimento das comunidades indígenas. Esse parágrafo único do artigo 20 foi vetado integralmente.
A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), em nota, demonstrou particular preocupação com o veto parcial em dois artigos, incluindo o 20. Para a entidade, “o Artigo 20 é perigoso, pois pode, igualmente, abrir margem para mitigar o usufruto exclusivo, diante do conceito genérico de ‘interesse de política de defesa’, justificando intervenções militares nos territórios”, descreve a nota. Já o Artigo 26 trata sobre cooperação entre indígenas e não-indígenas para exploração de atividades econômicas, que pode ampliar o assédio nos territórios para flexibilizar o usufruto exclusivo (Veja abaixo todos os vetos presidenciais).
O presidente, que se recupera de uma cirurgia no quadril, despachou no Palácio do Planalto, onde assinou, no limite do prazo constitucional para a decisão, os vetos ao PL. Estava acompanhado do ministro da Advocacia-Geral da União, Jorge Messias; do ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha; e da ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara.
Lula comentou sobre o veto parcial na rede social X (antigo Twitter), dizendo que vetou vários artigos do PL em acordo com o entendimento do STF. “Vamos dialogar e seguir trabalhando para que tenhamos, como temos hoje, segurança jurídica e também para termos respeito aos direitos dos povos originários”, escreveu o presidente. A medida não atendeu aos interesses de ambientalistas, movimentos indígenas e até do Ministério Público Federal, que reivindicavam um veto integral do PL. Ainda é incerto a reação do Congresso, já que Lula optou por uma saída alternativa.
O ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha, disse que o presidente decidiu vetar o marco temporal respeitando integralmente a Constituição, inclusive com base nas decisões do STF. “Sobram alguns artigos que são artigos que têm coerência com a tradição da política indigenista brasileira desde a Constituição de 88 e tem a constitucionalidade confirmada. Esses artigos são artigos importantes, contribuições do Congresso Nacional que reforçam a transparência em todo o processo de estudo, de declaração, de demarcação, que reforçam a participação efetiva dos estados e dos municípios”, disse o ministro, num aceno aos parlamentares.
A ministra Sonia Guajajara comemorou os vetos parciais do presidente, embora seu ministério tivesse recomendado a derrubada integral do PL. “Os vetos apresentados pelo presidente Lula ao PL 2903/2023 são uma grande vitória para os povos indígenas, reafirmando a decisão do Supremo Tribunal Federal, e garantindo o compromisso do governo com a agenda indígena, ambiental e internacional”, disse a ministra. Ela ressaltou ainda que se fez valer a Constituição, que já prevê regras específicas para a demarcação de terras indígenas. “Agora, seguiremos dialogando com o Congresso para que esses vetos sejam assegurados e que os direitos dos povos indígenas sejam defendidos e colocados em prática.”
Para a co-fundadora da Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (Anmiga), Braulina Baniwa, a decisão pelo veto parcial causa preocupação: “A nossa luta, nas últimas semanas, tem sido em direção ao veto total”, pontua. “Acabamos de receber a decisão parcial do presidente. O que isso representa para nós? O Estado brasileiro sempre foi racista, um Estado que discrimina e silencia os nossos territórios desde a Constituição”, analisou.
Para Braulina Baniwa, o veto parcial mais uma vez mostra que o Estado tem o seu lado. “Que é o lado do poder econômico e nossos próprios territórios continuam não tendo valor para o Estado. Essa é uma leitura minha imediata”, criticou. Segundo ela, a brecha deixada pelo veto parcial não será eficiente no combate à violência aos povos indígenas. “Para nós [o veto parcial] dá brecha de muitas mortes, muito sangue das mulheres, das crianças e dos jovens indígenas.”
O caminho do projeto
O PL 2.903/2023, que reeditava o marco temporal pelo Congresso, foi aprovado na Câmara dos Deputados em 30 de maio por 283 votos a 155. A medida recebeu várias críticas de lideranças indígenas em Brasília e em várias partes do Brasil, uma vez que o tema já estava em votação no STF.
Na época, Sonia Guajajara classificou o projeto como “um ataque grave aos povos indígenas e ao meio ambiente”. A ministra acreditava que haveria um diálogo maior no Senado. Mas esta casa legislativa apenas cumpriu com o compromisso de não levar o PL à votação antes do fim do julgamento pelo STF.
Depois da aprovação na Câmara, o texto seguiu para a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, sendo aprovado em 27 de setembro. Após quatro horas de reunião, o relatório do senador Marcos Rogério (PL-RO) recebeu a aprovação por 16 votos favoráveis a 10. Para que a proposta fosse aprovada o quanto antes, o relator rejeitou todas as 39 emendas apresentadas e manteve o texto na forma que veio da Câmara dos Deputados. A proposta seguiu para ser votada no Plenário do Senado em regime de urgência. No mesmo dia o marco temporal do Congresso foi aprovado por 43 votos a favor e 21 contrários.
A votação em tempo recorde foi uma resposta à decisão do STF que rejeitou a tese ruralista, seis dias antes, pelo placar de 9 x 2. O julgamento foi um dos mais longos da história da Corte, tendo iniciado em 2021 e foi marcado por vários adiamentos e pedidos de vistas.
A tese do marco temporal se transformou em um verdadeiro “cabo de guerra” entre os Poderes. O STF já declarou a tese inconstitucional, mas o Congresso reagiu e aprovou o PL em tempo recorde. Lula vetou parcialmente o projeto de lei ruralista. Agora, o Congresso ainda pode derrubar os vetos do presidente e, se isso ocorrer, o caso vai parar novamente no STF, que já deliberou sobre o tema. Os dois Poderes, Legislativo e Judiciário, vivem uma espécie de contenda, e o marco temporal tende a acirrar esse enfrentamento.
A Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), bancada temática e suprapartidária, constituída por 303 deputados federais e 50 senadores, já antecipou que vai trabalhar para derrubar os vetos de Lula. “A FPA não assistirá de braços cruzados a ineficiência do Estado brasileiro em políticas públicas e normas que garantam a segurança jurídica e a paz no campo. Buscaremos a regulamentação de todas as questões que afetam esse direito no local adequado, no Congresso Nacional”, diz a entidade em nota.
A FPA afirma ainda que cumpriu o seu papel constitucional de legislar. “A decisão dos dois Plenários é soberana e deve ser respeitada pelos demais Poderes da República, em reconhecimento às atribuições definias na Constituição Federal. O Parlamento Brasileiro representa a pluralidade da sociedade em sua amplitude de Estados, partidos e de ideais”, concluiu.
Veja os artigos que foram vetados do PL:
Art. 4º São terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas brasileiros aquelas que, na data da promulgação da Constituição Federal, eram, simultaneamente:
I – habitadas por eles em caráter permanente; II – utilizadas para suas atividades produtivas; III – imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar; IV – necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.
§ 1º A comprovação dos requisitos a que se refere o caput deste artigo será devidamente fundamentada e baseada em critérios objetivos.
§ 2º A ausência da comunidade indígena em 5 de outubro de 1988 na área pretendida descaracteriza o seu Avulso do PL 2903/2023 [3 de 16] 3 enquadramento no inciso I do caput deste artigo, salvo o caso de renitente esbulho devidamente comprovado.
§ 3º Para os fins desta Lei, considera-se renitente esbulho o efetivo conflito possessório, iniciado no passado e persistente até o marco demarcatório temporal da data de promulgação da Constituição Federal, materializado por circunstâncias de fato ou por controvérsia possessória judicializada.
§ 4º A cessação da posse indígena ocorrida anteriormente a 5 de outubro de 1988, independentemente da causa, inviabiliza o reconhecimento da área como tradicionalmente ocupada, salvo o disposto no § 3º deste artigo.
§ 7º As informações orais porventura reproduzidas ou mencionadas no procedimento demarcatório somente terão efeitos probatórios quando fornecidas em audiências públicas, ou registradas eletronicamente em áudio e vídeo, com a devida transcrição em vernáculo.
Art. 5º A demarcação contará obrigatoriamente com a participação dos Estados e dos Municípios em que se localize a área pretendida, bem como de todas as comunidades diretamente interessadas, franqueada a manifestação de interessados e de entidades da sociedade civil desde o início do processo administrativo demarcatório, a partir da reivindicação das comunidades indígenas.
Art. 6º Aos interessados na demarcação serão assegurados, em todas as suas fases, inclusive nos estudos preliminares, o contraditório e a ampla defesa, e será obrigatória a sua intimação desde o início do procedimento, bem como permitida a indicação de peritos auxiliares.
Art. 9º Antes de concluído o procedimento demarcatório e de indenizadas as benfeitorias de boa-fé, nos termos do § 6º do art. 231 da Constituição Federal, não haverá qualquer limitação de uso e gozo aos não indígenas que exerçam posse sobre a área, garantida a sua permanência na área objeto de demarcação. § 1º Consideram-se de boa-fé as benfeitorias realizadas pelos ocupantes até que seja concluído o procedimento demarcatório. § 2º A indenização das benfeitorias deve ocorrer após a comprovação e a avaliação realizada em vistoria do órgão federal competente.
Art. 10. Aplica-se aos antropólogos, aos peritos e a outros profissionais especializados, nomeados pelo poder público, cujos trabalhos fundamentem a demarcação, o disposto no art. 148 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil).
Art. 11. Verificada a existência de justo título de propriedade ou de posse em área considerada necessária à reprodução sociocultural da comunidade indígena, a desocupação da área será indenizável, em razão do erro do Estado, nos termos do § 6º do art. 37 da Constituição Federal.
Parágrafo único. Aplica-se o disposto no caput deste artigo às posses legítimas, cuja concessão pelo Estado possa ser documentalmente comprovada.
Art. 13. É vedada a ampliação de terras indígenas já demarcadas. Avulso do PL 2903/2023 [6 de 16] 6
Art. 14. Os processos administrativos de demarcação de terras indígenas ainda não concluídos serão adequados ao disposto nesta
Lei. Art. 15. É nula a demarcação que não atenda aos preceitos estabelecidos nesta Lei.
Do artigo 16, foi vetado o parágrafo 4:
§ 4º Caso, em razão da alteração dos traços culturais da comunidade indígena ou de outros fatores ocasionados pelo decurso do tempo, seja verificado que a área indígena reservada não é essencial para o cumprimento da finalidade mencionada no caput deste artigo, poderá a União:
I – retomá-la, dando-lhe outra destinação de interesse público ou social;
II – destiná-la ao Programa Nacional de Reforma Agrária, atribuindo-se os lotes preferencialmente a indígenas que tenham aptidão agrícola e assim o desejarem.
Art. 18. São consideradas áreas indígenas adquiridas as havidas pela comunidade indígena mediante qualquer forma de aquisição permitida pela legislação civil, tal como a compra e venda ou a doação. § 1º Aplica-se às áreas indígenas adquiridas o regime jurídico da propriedade privada.
§ 2º As terras de domínio indígena constituídas nos termos da Lei nº 6.001, de 19 dezembro de 1973, serão consideradas áreas indígenas adquiridas nos moldes desta Lei.
Do artigo 20, vetado parágrafo único:
Parágrafo único. A instalação de bases, unidades e postos militares e demais intervenções militares, a expansão estratégica da malha viária, a exploração de alternativas energéticas de cunho estratégico e o resguardo das riquezas de cunho estratégico serão implementados independentemente de consulta às comunidades indígenas envolvidas ou ao órgão indigenista federal competente.
Art. 21. Fica assegurada a atuação das Forças Armadas e da Polícia Federal em área indígena, no âmbito de suas atribuições, independentemente de consulta às comunidades indígenas envolvidas ou ao órgão indigenista federal competente.
Art. 22. Ao poder público é permitida a instalação em terras indígenas de equipamentos, de redes de comunicação, de estradas e de vias de transporte, além das construções necessárias à prestação de serviços públicos, especialmente os de saúde e educação.
Art. 23. O usufruto dos indígenas em terras indígenas superpostas a unidades de conservação fica sob a responsabilidade do órgão federal gestor das áreas protegidas, observada a compatibilidade do respectivo regime de proteção.
§ 1º O órgão federal gestor responderá pela administração das áreas das unidades de conservação superpostas a terras indígenas, com a participação das comunidades indígenas, que deverão ser ouvidas, considerados os seus usos, tradições e costumes, e poderá, para tanto, contar com a consultoria do órgão indigenista federal competente.
§ 2º O trânsito de visitantes e pesquisadores não indígenas deve ser admitido na área afetada à unidade de conservação, nos horários e condições estipulados pelo órgão federal gestor.
Do artigo 24, vetado parágrafo 3:
§ 3º O ingresso, o trânsito e a permanência de não indígenas não podem ser objeto de cobrança de tarifas ou quantias de qualquer natureza por parte das comunidades indígenas.
Art. 25. São vedadas a cobrança de tarifas ou quantias de qualquer natureza ou a troca pela utilização das estradas, dos equipamentos públicos, das linhas de transmissão de energia ou de quaisquer outros equipamentos e instalações colocados a serviço do público em terras indígenas.
Do artigo 26, fica o caput, mas são vetados:
§ 1º As terras indígenas não poderão ser objeto de arrendamento ou de qualquer ato ou negócio jurídico que elimine a posse direta pela comunidade indígena.
§ 2º É permitida a celebração de contratos que visem à cooperação entre indígenas e não indígenas para a realização de atividades econômicas, inclusive agrossilvipastoris, em terras indígenas, desde que:
I – os frutos da atividade gerem benefícios para toda a comunidade indígena;
II – a posse dos indígenas sobre a terra seja mantida, ainda que haja atuação conjunta de não indígenas no exercício da atividade;
III – a comunidade indígena, mediante os próprios meios de tomada de decisão, aprove a celebração contratual;
IV – os contratos sejam registrados na Funai.
Art. 27. É permitido o turismo em terras indígenas, organizado pela própria comunidade indígena, admitida a celebração de contratos para a captação de investimentos de Avulso do PL 2903/2023 [11 de 16] 11 terceiros, desde que respeitadas as condições estabelecidas no § 2º do art. 26 desta Lei.
Parágrafo único. Nas terras indígenas, é vedada a qualquer pessoa estranha às comunidades indígenas a prática de caça, pesca, extrativismo ou coleta de frutos, salvo se relacionada ao turismo organizado pelos próprios indígenas, respeitada a legislação específica.
Art. 28. No caso de indígenas isolados, cabe ao Estado e à sociedade civil o absoluto respeito às suas liberdades e aos seus meios tradicionais de vida, e deve ser evitado, ao máximo, o contato com eles, salvo para prestar auxílio médico ou para intermediar ação estatal de utilidade pública.
§ 1º Todo e qualquer contato com indígenas isolados deve ser realizado por agentes estatais e intermediado pela Funai.
§ 2º São vedados o contato e a atuação com comunidades indígenas isoladas de entidades particulares, nacionais ou internacionais, salvo se contratadas pelo Estado para os fins do caput deste artigo, e, em todo caso, é obrigatória a intermediação do contato pela Funai.
Art. 29. As terras sob ocupação e posse dos grupos e das comunidades indígenas, o usufruto exclusivo das riquezas naturais e das utilidades existentes nas terras ocupadas, observado o disposto no inciso XVI do caput do art. 49 e no § 3º do art. 231 da Constituição Federal, bem como a renda Avulso do PL 2903/2023 [12 de 16] 12 indígena, gozam de plena isenção tributária, vedada a cobrança de quaisquer impostos, taxas ou contribuições sobre uns ou outros.
Art. 30. O art. 1º da Lei nº 11.460, de 21 de março de 2007, passa a vigorar com a seguinte redação: “Art. 1º Fica vedado o cultivo de organismos geneticamente modificados em áreas de unidades de conservação, exceto nas Áreas de Proteção Ambiental.”
Art. 31. O caput do art. 2º da Lei nº 4.132, de 10 de setembro de 1962, passa a vigorar acrescido do seguinte inciso IX: “Art. 2º ………………………….. …………………………………………… IX – a destinação de áreas às comunidades indígenas que não se encontravam em área de ocupação tradicional em 5 de outubro de 1988, desde que necessárias à reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições. ……………………………………….”(NR)
Art. 32. O inciso IX do caput do art. 2º de Lei nº 6.001, de 19 de dezembro de 1973, passa a vigorar com a seguinte redação: “Art. 2º ………………………….. …………………………………………… IX – garantir aos índios e comunidades indígenas, nos termos da Constituição Federal, a posse permanente das terras tradicionalmente ocupadas em 5 de outubro de 1988, reconhecendo-lhes Avulso do PL 2903/2023 [13 de 16] 13 o direito ao usufruto exclusivo das riquezas naturais e de todas as utilidades naquelas terras existentes;
Foto de capa: Ricardo Stuckert/PR