Manuela Rached Pereira e Luara Wandelli Loth, especial para O Joio e O Trigo
Conjunto de estudos, relatos e psicólogos associa sofrimento psíquico à alimentação escassa, que atinge sistemicamente mulheres e pessoas negras em situação de pobreza no país
“A minha mãe, sempre que começava a faltar comida, era internada, e quando ela era internada, era no hospício.” Sob os olhos e ouvidos atentos de uma plateia cheia no Rio de Janeiro, Rosilene Torquato empunhava um microfone e frisava como a fome é capaz de adoecer pessoas “até mentalmente”.
Do palco principal do Encontro Nacional contra a Fome, em uma tarde de junho de 2022, Rosilene falava enquanto representante dos Agentes de Pastoral Negros do Brasil (APNs) e testemunha direta da fome no país do século passado.
Convidada a integrar um painel sobre as consequências da insegurança alimentar no Brasil atual, ela comentava a relação entre a falta de alimento dentro de casa e o sofrimento psíquico, duas aflições que marcaram simultaneamente sua infância, mas que raramente são associadas diretamente por quem não tenha vivido ou presenciado realidades de escassez.
Durante a apuração, a reportagem localizou apenas uma série do jornal Folha de S.Paulo, de maio de 1998, que buscava explicitar a correlação nacionalmente. As publicações, que à época receberam críticas por parte de especialistas em saúde pública, atribuíam a alta de internações psiquiátricas à fome entre famílias pobres afetadas pela seca em municípios do sertão cearense e pernambucano.
Mais de duas décadas depois, o evento no qual Rosilene Torquato compartilhou seu relato ocorreu no mesmo ano em que a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede Penssan) divulgou que a fome atingia mais de 33 milhões de brasileiros, 14 milhões a mais do que em 2020.
Já em 2023, um relatório lançado em julho pela ONU mostra que, no país, 21 milhões de pessoas, ou cerca de 10% da população, não têm o que comer todos os dias e 70,3 milhões vivem em algum grau de insegurança alimentar.
O que é insegurança alimentar?
Insegurança alimentar é quando existe incerteza em relação ao acesso aos alimentos necessários para uma alimentação saudável, um conceito criado pela Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (Ebia). Está dividido em 3 níveis de gravidade:
• Leve: quando há incerteza quanto ao acesso a alimentos em um futuro próximo e/ou quando a qualidade da alimentação já está comprometida
• Moderada: quando a quantidade de alimentos é insuficiente para toda a família
• Grave: quando há privação no consumo de alimentos e fome
Também sobre os últimos anos, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) divulgou que o número de internações e consultas psiquiátricas no país aumentou em 27,3% e 11,6%, respectivamente, do primeiro ao segundo ano de pandemia de Covid-19.
Estatísticas como as demonstradas acima são analisadas como consequências da pandemia de Covid-19 e da crise econômica instalada no país, somadas à diluição de políticas de proteção social durante a gestão do então presidente Jair Bolsonaro, a exemplo da extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), em 2019, e do desmonte da Coordenação de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas pelo Ministério da Saúde, a partir de 2020.
“Ao avanço desse ambiente [pandêmico] de degradação social se juntaram os progressivos processos de desmonte de políticas públicas e a fragilização das instituições que formam a rede de proteção social, tanto no campo da alimentação, como no de outras condições exigidas para que se tenha uma vida digna e saudável”, registrou a Rede Penssan em seu 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Brasil.
Diante de um contexto nacional de aumento da fome e de atendimentos psiquiátricos, a reportagem buscou investigar se relatos como os de Rosilene e outras pessoas ouvidas na apuração retratam uma realidade comum de sofrimento e crises psíquicas entre quem vive sob a ameaça constante de insegurança alimentar.
Fome e sofrimento na capital do país
Uma pesquisa de agosto do Datafolha revela que um terço dos brasileiros relata ansiedade, problemas com sono e com a alimentação sempre ou frequentemente. Desses, o impacto é maior nas classes D e E, em que 37% declaram ter problemas com sono com grande frequência, ante 29% entre os brasileiros da classe C e 25% das classes A e B.
Além disso, enquanto 21% da população já foi diagnosticada com transtorno de ansiedade ao longo da vida, o índice sobe para 27% entre mulheres, quase o dobro da prevalência entre homens (14%).
Nesse contexto, os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), que são serviços do SUS especializados no atendimento de pessoas em sofrimento psíquico e diagnosticadas com transtornos mentais, passaram a acumular exemplos do vínculo entre pobreza, insegurança alimentar e diferentes manifestações de sofrimento psíquico.
No Distrito Federal, o CAPS II de Taguatinga é representativo da situação da capital federal, que durante a pandemia se tornou a Unidade Federativa brasileira onde a pobreza mais aumentou. De 2019 a 2021, a população pobre da região passou de 12,9% para 20,8%, e a parcela em extrema pobreza foi de 3,2% para 7,3%, segundo um estudo do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre), da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
Voltado ao atendimento de pessoas “que se encontram em situações de crise ou em processos de reabilitação psicossocial”, como define o Ministério da Saúde, o CAPS II brasiliense passou a receber demandas por alimentos nos últimos anos.
“É um público que não tem só uma demanda de saúde mental stricto sensu, de transtornos mentais, por exemplo. É uma população que tem outras demandas relacionadas à saúde, mas que estão ligadas ao [contexto] social”, afirma Cláudia Sousa, psicóloga do serviço em Taguatinga.
A profissional relata que, principalmente a partir do início da pandemia, muitos usuários do serviço passaram a pedir cestas básicas aos funcionários do CAPS, onde recebia “diversos relatos de insegurança alimentar impactando a saúde mental em várias dimensões”.
“Sabe a história da criança que vai para a escola para comer?! Isso também é uma realidade nossa que precisamos admitir”, completa Cláudia sobre as refeições que são oferecidas no CAPS. “Acontece de as pessoas frequentarem porque elas também precisam se alimentar. Tem pessoas que percebemos que a crise [psíquica] tem a ver com a questão da falta de alimentação, e não que isso seja o motivo único da crise, mas é um agravante.”
Para colocar em prática os cuidados aos quais se propõe o serviço, profissionais como Cláudia se viram obrigadas, muitas vezes sem o devido suporte institucional, a extrapolar suas funções. Isso ocorria, conforme relatado por ela, na medida em que restava mais claro no dia a dia que “de barriga vazia não há terapia” efetiva.
O depoimento da psicóloga é endossado pelo estudo internacional intitulado “A relação entre as deficiências nutricionais e a saúde mental” (em tradução livre), publicado em 2021 pela Revista Chilena de Nutrición.
Na publicação, pesquisadoras da Rede Covida incorporam mais de 40 estudos que mostram como aspectos socioeconômicos somados a uma dieta nutricionalmente desequilibrada podem estar associados a “maiores chances de um indivíduo desenvolver ansiedade, depressão, transtorno bipolar, esquizofrenia, transtorno obsessivo-compulsivo, doença de Alzheimer, entre outros”, uma vez que “o cérebro usa a energia dos alimentos para funcionar adequadamente”.
“Adoecer não é algo somente biológico”, destaca Cláudia. “Não ter como nutrir as células vai levar diretamente a doenças, mas não ter nada ou quase nada para viver também influencia, por exemplo, no que você decide como prioridade.”
Sobre o contexto em que atua, com pessoas em situações de extrema vulnerabilidade, a psicóloga afirma que muitos acabam abandonando o tratamento e agravando seus sintomas. “Se eu sou uma mulher negra, que moro na periferia, mãe solo, desempregada, esperando em filas enormes de serviços públicos para conseguir algum benefício social, se eu tenho que escolher entre alimentar um filho e ir ao CAPS participar de atividades, eu provavelmente vou alimentar meu filho”, exemplifica.
Cláudia acrescenta ainda que mesmo as medicações psiquiátricas, que são as alternativas mais facilmente acessadas pelos usuários do serviço, têm efeitos fora do indicado quando a pessoa não se alimenta direito. Segundo ela, não é raro que pessoas usem medicações prescritas para dormir a fim de “burlar a fome”, por exemplo.
Assim como no CAPS II de Taguatinga, profissionais de outro serviço público no DF testemunham os efeitos da insegurança alimentar na saúde mental da população. É o caso de Olga Jacobina, psicóloga do Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) Guará II.
Sobre os episódios de crises psíquicas que acompanhou entre usuários do CRAS, Olga reforça que os casos envolviam contextos mais complexos em torno da insegurança alimentar: “Tem os efeitos diretos da falta de substâncias e nutrientes, mas tem outro processo importante que é o que as pessoas precisam passar para conseguir alimentos, marcado pela humilhação e pela falta de estima social.”
Ela também é incisiva ao destacar a prevalência no uso de medicamentos psiquiátricos pelo público que atende, além de perceber uma desproporção entre o acesso a estes em comparação com outras formas de tratamento para problemas de saúde mental: “Aqui, quase todo mundo é medicado. Toma remédio para dormir, toma remédio para acordar, para não ficar ansioso, para não ficar deprimido.”
O relato da psicóloga ilustra a tendência de aumento na venda de antidepressivos e estabilizadores de humor no Brasil, que cresceu 36% entre 2019 e 2022, de acordo com dados do Conselho Federal de Farmácia, elaborados a partir da Consultoria IQVIA.
Durante uma visita da reportagem ao CRAS Guará II, um grupo de aproximadamente 200 pessoas aguardava por atendimento há mais de 12 horas.
“Um constrangimento para um pai de família” é como Dida José, mestre de obras desempregado, de 59 anos, define as filas do serviço. Em voz baixa, ele admite que não consegue dormir pela angústia causada pelo desemprego, e avalia que a longa espera para ser atendido no serviço é efeito da “fome bruta no Distrito Federal”.
Próximas a Dida, estavam reunidas quatro gerações da mesma família, da avó ao neto, assim como mães solo que se revezavam na fila com familiares para garantir uma ficha de atendimento no CRAS. Entre elas estava Gessilvania Ferreira, de 39 anos, também desempregada e que recorreu ao serviço para solicitar a renovação de um auxílio federal e conseguir comprar comida para ela e os quatro filhos.
Com as cestas básicas distribuídas na igreja que frequenta, Gessilvania conta que sobrevive com o “básico” e que não consegue trabalhar fora de casa, pois não pode deixar sozinho o filho mais novo, diagnosticado com autismo e que “demanda muitos cuidados especiais”. Ela só conseguiu um lugar na fila do CRAS porque reveza o cuidado das crianças com sua irmã, que também é mãe: “Quando uma vem, a outra fica com todas elas.”
A experiência da moradora do DF retrata uma realidade constatada pelo Datafolha, que divulgou, em dezembro passado, que 76% dos beneficiários do então programa federal Auxílio Brasil declararam usar o dinheiro do benefício principalmente para se alimentar.
Mesmo com o dinheiro do auxílio federal, substituído em 2023 pelo Bolsa Família, Gessilvania lamenta: “A comida está muito cara, então dá para comprar só o básico mesmo. Arroz com feijão, às vezes cuscuz, uma carne mais barata, ou um ovo.”
Ao ser questionada sobre como se sente diante da situação, ela resume: “Ansiosa, mas não dá para parar porque os meninos dependem de mim.”
“Essas situações trazem à tona processos muito dolorosos e cada pessoa reage de um jeito muito próprio, mas a sensação de humilhação e degradação é geral por aqui”, conclui a psicóloga do CRAS.
Se tem arroz e feijão, é fome?
A grande maioria das mulheres entrevistadas que hoje convive com a insegurança alimentar já havia vivenciado, em outros tempos, situações extremas de escassez de alimentos. E parecem ser as lembranças desses períodos o que faz com que elas relativizem as privações enfrentadas no presente.
É desse contexto que vem a baiana Ivania Souza Santos, de 39 anos, que se mudou há alguns anos com os filhos para o DF, onde passou a coletar recicláveis e encontrou nas ocupações urbanas a alternativa para não viver nas ruas de Brasília.
A catadora diz que, hoje, não passa fome, pois costuma ter garantido dentro de casa o arroz, o feijão e o cuscuz, além de fazer um preparo com água e farinha que agrada aos filhos, mas que ela conta não suportar mais, por ter perdido as contas de quantas vezes foi a única coisa que sua mãe tinha para lhe oferecer quando criança.
Hoje na idade adulta, enquanto trata um câncer de mama, Ivania relembra de tempos ainda piores que enfrentou com os filhos pequenos. “Já teve dia em que não tinha nem sal dentro de casa. Eu já comi coisa do lixo, comida vencida… Teve dia de eu querer me matar por causa de alimento, que eu subi no vaso do banheiro para amarrar uma corda”, relata ela, que desistiu da tentativa de suicídio ao escutar o choro do filho mais novo.
Sobre a relativização da insegurança alimentar entre pessoas com longo histórico de vulnerabilidades, a psicóloga Lara Souza, do movimento social Bem Viver, do qual Ivania também faz parte, observa: “De fato, as pessoas não costumam fazer essa análise de que também é fome quando só se tem uma coisa para comer, ainda mais porque as pessoas pensam: ‘falta tanto que se tiver alguma coisa já está bom’.”
“Não deixar faltar às crianças”
O cenário testemunhado pela investigação no DF também é realidade em São Paulo, onde o número absoluto de pessoas famintas é o maior entre todos os estados brasileiros, com 6,8 milhões em situação de fome, segundo o II Vigisan, da Rede Penssan.
Na capital paulista, o relato de mães frequentadoras de um Centro para Crianças e Adolescentes (CCA), na Zona Oeste da cidade, reforça como muitas mulheres responsáveis pelo cuidado dos filhos e netos priorizam o bem estar de suas crianças às próprias necessidades.
Recém-empregada em um serviço como auxiliar de limpeza, Isabel*, de 56 anos, também sobrevive à base de arroz e feijão, que muitas vezes recebe por meio de doações de cestas básicas no próprio centro frequentado por seus dois netos pré-adolescentes, por quem é responsável.
“Mistura mesmo é difícil ter em casa porque, se eu comprar carne, fica sem feijão, se eu comprar uma bolacha ou alguma fruta, falta óleo e açúcar. Então, tem muita coisa que eu deixo de comprar para não ficarmos sem os mantimentos e, mesmo assim, tem hora que a gente passa sufoco”, conta.
A juventude de Isabel também foi marcada pela vulnerabilidade extrema durante os anos em que viveu em situação de rua na capital, após ser violentada dentro de casa pelo ex-marido, com quem se casou aos 10 anos de idade, depois de ser expulsa de casa pelo pai.
“Como eu morei na rua e perdi duas filhas de fome e frio, quando meus netos me pedem algo de comer que eu não posso dar, isso me assusta e machuca muito”, desabafa ela, aos prantos. “Eles já falaram para mim que eu tinha que passar no posto de saúde por causa desses choros. O mais velho fala: ‘Vó, você tem tanta preocupação, a senhora tem que passar no psicólogo do posto’, mas eu falo: ‘Eu tô bem’. Nem comento muito com ele essas coisas.”
No mesmo CCA, o depoimento de outra mulher expõe a complexidade das realidades impactadas pela insegurança alimentar e pela falta de garantias básicas de sobrevivência, especialmente entre mães e responsáveis pelo cuidado de crianças.
Desempregada e mãe de três filhos pequenos, a paulista Andressa Thalita se mudou do litoral sul à capital paulista há cinco anos, depois de sofrer violência doméstica do ex-marido no período em que era vendedora ambulante em praias de Peruíbe. Depois de se divorciar, ela conta que o único serviço que encontrou na antiga cidade foi em quiosques da região, onde ganhava R$35 pelo dia inteiro lavando louças.
Em São Paulo, Andressa conheceu seu atual marido, com quem teve uma filha, hoje com 2 anos. “Quando viemos para cá, a gente dormia no papelão com uma coberta. Eu grávida, com meus filhos e o pai da minha menina. Às vezes, deixava de comer pras crianças comerem porque procuro eu passar necessidade e dar um jeito de não deixar faltar pra elas”, relata.
“Mas me sentia muito incapaz e não era fácil. Tinha muitas brigas entre eu e ele [companheiro] por causa da nossa situação, mexia muito com o psicológico da gente”, completa.
A paulista relembra ainda que, pouco depois da mudança à capital, buscou ajuda psicológica e religiosa para se “acalmar” e tentar controlar a depressão e as crises de pânico, que enfrentou ao longo de 8 anos. “Eu comecei a ter medo das coisas, de tomar ônibus, de sair de casa. Tinha medo até das pessoas, e me isolava, não falava com ninguém”, recorda.
“Quando eu tive depressão pós-parto, ainda no hospital, eu fui encaminhada ao psicólogo. Daí, só continuei passando no posto [de saúde]. Eu já tomava sertralina [medicamento utilizado em tratamentos de depressão, ansiedade e diagnósticos relacionados] e um outro calmante antidepressivo. Fiquei à base de remédio porque meu coração já não estava aguentando mais aquela opressão”, completa Andressa, que hoje conta com a ajuda de doações do CCA e sobrevive com a renda que seu marido tira de “bicos” como vigilante.
Na avaliação de Olga Almeida de Souza, psicóloga e gerente do CCA na Zona Oeste paulistana, o caso de Andressa retrata a situação de muitas famílias que frequentam o serviço, principalmente aquelas chefiadas por mulheres.
“Se a pessoa não tem o que comer, vai ficando tudo mais pesado e vão se desdobrando outras situações em cima disso, a moradia muito precária e o sentimento de que ela não tem um lugar de ‘utilidade’ na sociedade, por exemplo. Muitas acabam tendo a autoestima muito ferida quando não têm um trabalho, e por aí vai, é uma bola de neve”, analisa.
Também questionado sobre a complexidade de se investigar a insegurança alimentar como um dos principais fatores responsáveis pelo sofrimento psíquico de pessoas que não têm garantias básicas supridas, o psicólogo e especialista em saúde da família Dassayeve Lima reconhece: “De fato, nunca é só fome.”
“Sempre que você vai analisar a fundo o fenômeno da fome, e é honesto à sua análise, você acaba complexificando isso, vai chegando a opressões diversas, violências, desamparo do Estado, e tudo acaba ficando mais amplo e mais complexo”, avalia ele, que também é mestre em Psicologia e Políticas Públicas pela Universidade Federal do Ceará (UFC).
Ainda assim, para o psicólogo, faz sentido jogar luzes sobre a insegurança alimentar quando se investiga o que está por trás do sofrimento, de diagnósticos e da medicalização de pessoas que sobrevivem sem o básico: “Ainda que a fome nunca venha só, é importante não deixar de dar destaque a ela. Até porque, às vezes, a gente amplia tanto a coisa que perde algo que é fundamental.”
“É importante se falar em fome justamente pelo seu caráter visceral, do campo da urgência e da vida mesmo. É uma coisa tão concreta, tão básica. Então, a gente não pode perder a dimensão do quanto a ausência desse direito tão fundamental produz uma série de indignidades, violações de direitos e sofrimento”, reforça Dassayeve.
Do passado ao futuro
Em 2023, além da recriação do Consea, que tem como uma de suas atribuições assessorar o presidente da República na formulação de políticas para a garantia do direito humano à alimentação, o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) criou o Departamento de Saúde Mental, em substituição à Coordenação-Geral da gestão anterior. A finalidade do novo órgão, vinculado ao Ministério da Saúde, é possibilitar o processo de habilitação e custeio de serviços psicossociais comunitários pelo país, segundo a Fiocruz.
Ainda assim, a realidade brasileira segue representada em altos índices de pobreza, insegurança alimentar e diagnósticos de saúde mental.
No país onde mais de 70 milhões viviam em situação de pobreza até o ano passado e 8,6 milhões estavam desempregadas no segundo trimestre de 2023, conforme dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD/IBGE), estatísticas recentes apontam quem são os mais afetados pela fome no país.
Um suplemento divulgado em junho pela Rede Penssan mostra que em 35,5% das residências chefiadas por mulheres, entre as quais 22% eram negras e 13,5% brancas, ocorria uma ou nenhuma refeição por dia pela falta de dinheiro, frente a 22,1% de domicílios comandados por homens (14,3% negros e 7,8% brancos).
“Da população que é atingida o tempo todo pela fome, a maioria é negra, e essa população que passa fome é que faz esse movimento para se alimentar. É geralmente a vizinha, a mulher, que se une com as outras para trocar um alimento. É ela que tem um olhar dentro do seu território para ajudar as outras”, afirmou Rosilene Torquato, da organização Agentes de Pastoral Negros do Brasil, ao final de sua fala no Encontro Nacional Contra a Fome.
Ao verificar que a fome é maior entre famílias chefiadas por mulheres negras, a coordenadora da Rede Penssan, Sandra Chaves, afirmou, em nota, que o reconhecimento do racismo e do sexismo na formação estrutural da sociedade brasileira se faz urgente na implementação e qualificação de políticas públicas que sejam “promotoras da equidade e do acesso amplo, irrestrito e igualitário à alimentação” no país.
Já para Rosilene, para além de um reconhecimento institucional, representantes dessa população mais atingida pela insegurança alimentar deveriam ser efetivamente integrados nas tomadas de decisão do Estado: “Se é essa mulher que sente falta de [serviços de] saúde para levar seu filho, que corre atrás de escola, que corre pela água, pelo saneamento básico, então essa mulher tem muito a dizer sobre como deveriam funcionar cada política pública.”
“Porque com fome essa mulher surta, rouba, furta, essa mulher faz loucuras. E quem atende essa mulher?! Quem tem o poder de fazer isso é o poder público e parece que ele tem um projeto político de matar. Não à toa esses números estão assim. Mas, se eles têm um projeto de nos matar, nós temos um projeto de viver”, concluiu ela sob aplausos.
* Isabel pediu para não ter o nome real divulgado.