Conversamos com Amarílis Costa, advogada e coordenadora geral da Rede Feminista de Juristas, que fizeram articulações para pressionar a opinião pública, afim de impedir a aprovação do PL.
Por Esmeralda Angélica
O aborto em caso de estupro ou risco à vida da mulher é garantido por lei desde 1940 no Brasil. Contrariando este direito já conquistado pelas mulheres, o senador Eduardo Girão (Podemos/CE), propôs a criação do PL 5435/2020, que obriga o Estado a pagar um salário-mínimo a criança que foi fruto de estupro, até que ela complete 18 anos. Apelidada de Bolsa Estupro, a medida foi abertamente criticada por defensoras dos direitos das mulheres, que criaram as hashtags #BolsaEstupro e #GravidezForçadaÉTortura na redes sociais como forma de protesto.
A proposta dispõe sobre o Estatuto da Gestante e prevê que as mulheres vítimas de estupro, que vierem a conceber a criança, será oportunizada a opção pela adoção, pelo SUS (Sistema Único de Saúde) junto as demais entidades do Estado e da sociedade civil.
“Às mulheres que vítimas de estupro vierem a conceber, será oportunizado pelo SUS junto as demais entidades do Estado e da sociedade civil, a opção pela adoção, caso a gestante decida por não acolher a criança por nascer, bem como as sanções penais ao estuprador previstas na Lei 12.015/2009.”, diz um trecho do texto.
Para comentar o Projeto de Lei proposto por Girão que está em tramitação no Senado, o Nós, Mulheres da Periferia conversou com a Amarílis Costa, advogada e coordenadora geral da Rede Feminista de Juristas, que fizeram articulações para pressionar a opinião pública, afim de impedir a aprovação do PL.
Confira!
Nós, Mulheres de Periferia: De modo geral, o que esse Projeto de Lei significa?
Amarílis Costa: Embora declare ser uma forma de “garantir proteção à mulher e corresponsabilizar o homem”, o projeto é uma afronta à Constituição Federal, uma introdução a políticas discriminatórias contra famílias pobres e periféricas e um verdadeiro prelúdio ao Conto da Aia no Brasil. A apresentação do projeto, poucos meses após o caso da violência sexual no Espírito Santo que chocou o Brasil, é um aceno nefasto à institucionalização de violências de gênero e à naturalização da violência sexual contra crianças e adolescentes.
Nós: Quais os riscos para as mulheres brasileiras com a aprovação deste PL?
Amarílis: As considerações neste aspecto são longas, dolorosas e pesadas. Este é um projeto que tem conotações eugenistas e racistas, além de reforçar o controle dos corpos femininos e ameaçar pessoas transgênero de forma brutal.
Precisamos observar que o projeto coloca as mulheres como meros vasos de bebês – ou do “capital humano em desenvolvimento”, nos termos da justificação.
Essa objetificação das mulheres ganha contornos mais perversos quando notamos que há uma prioridade para sua aplicação em famílias numerosas (acima de quatro filhos).
Conforme dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) , estas são predominantemente famílias pobres, que não têm acesso adequado aos sistemas de saúde e portanto não possuem contato frequente com educação sexual e métodos contraceptivos. Observando o recorte racial inserido nos dados censitários, e com a ciência de que as famílias negras e indígenas ainda são predominantes nas linhas de pobreza, concluímos que este projeto é particularmente perigoso para mulheres negras e indígenas, que voltam a ser as produtoras em massa da força de trabalho brasileira à base de violência e violação sistemática de seus direitos.
Há um aspecto perverso e nefasto para a população trans em situação de violência sexual que resulte em estado gravídico: com a obrigatoriedade de comunicação ao agressor deste estado gravídico – tanto pelos sistemas de saúde quanto por quem sofre a violência – há uma sujeição cruel do corpo transgênero à vontade do agressor, que sob a guisa de “zelar pelo bem estar da gravidez”, poderá interferir e até impedir continuidade de terapias pertinentes à população trans. As violências são sucessivas.
O projeto também responsabiliza criminalmente quem “causar danos a criança por nascer”; assim, o médico que realiza o aborto legal pode ser processado por simplesmente cumprir a lei. O projeto está proibindo mulheres de exercerem um direito que é delas, o direito ao aborto nos casos de anencefalia, risco de vida à mãe e estupro, ao mesmo tempo em que afugenta a Medicina de efetivar este exercício do direito da mulher.
Por isso, reafirmamos: o projeto é uma afronta à Constituição Federal, uma introdução a políticas discriminatórias contra famílias pobres e periféricas e um verdadeiro prelúdio ao Conto da Aia no Brasil. Os riscos são enormes.
Nós: Um dos objetivos da PL é incentivar as vítimas de estupro a não abortarem, por intermédio de um auxílio financeiro. Do que devemos ter medo em relação a esse projeto?
Amarílis: O projeto afirma que o estuprador identificado deverá ser tratado como genitor, prestando alimentos e exercendo paternidade; assim, obriga mulheres não só a terem de levar uma gestação traumática a termo e assumir sua responsabilidade, mas também força mulheres a conviver, quase que diariamente, com o agressor – considerando que no projeto o SUS deve orientar o atendimento com foco nessa aberração que o projeto chama de paternidade. Em caso de não identificação do agressor, o projeto também prevê que um nascimento advindo de um estupro será encaminhado à adoção “se a mãe não quiser acolher”; o exercício do direito de abortar é ignorado, há uma institucionalização da violência e a falsa ideia de recompensa por este horror, e a vítima de violência ainda é hostilizada por não desejar conviver com o trauma.
O projeto também obriga as mulheres a comunicarem a gravidez ao genitor, dando aos homens ainda mais controle sobre nossos corpos; assim, alimenta a noção equivocada de que há uma relação de propriedade entre homens, mulheres, fetos, crianças e adolescentes, como também estimula uma percepção social de que a maternidade solo é fruto de um capricho feminino, e não da irresponsabilidade masculina em casos “normais”. Nos casos especificamente pautados pelo projeto, que se debruça sobre ao estado gravídico derivado do estupro, é nefasta e ofensiva a noção que o senador tenta incutir no ordenamento jurídico e no imaginário popular, de que agressores sexuais podem ser transformados em familiares. É uma institucionalização absurda de uma versão bizarra da Síndrome de Estocolmo.
Nós: O que esse projeto quer dizer em relação a segurança e saúde das mulheres?
Amarílis: O projeto quer apenas reforçar controle sobre elas. Há uma intenção de culpabilizar e estigmatizar ainda mais as vítimas de violência sexual a longo prazo. A mulher é sempre culpada e culpabilizada pela perversão masculina. A Bolsa Estupro tenta trazer uma justificativa para este fenômeno, plantando no imaginário popular a fantasia de que mulheres querem ser estupradas para “viver de auxílio”. Precisamos notar que nenhuma compensação é fornecida pelo Estado que falha, sistematicamente, em assegurar e efetivar direitos para as mulheres. A violência sexual, como vimos tristemente no Espírito Santo, é resultado de falhas constantes – quiçá intencionais – em garantir o bem estar de crianças e adolescentes; meninas, jovens e mulheres, que não estão seguras em momento algum de suas vidas, seja em casa, no trabalho, usando o transporte público, nas escolas, nas vias públicas. O Estado não lhes garante segurança; não lhes oferece o mínimo de reparação pela violência sofrida, e como acompanhamos no caso Mariana Ferrer, o Estado inclusive se posiciona ativamente para impingir mais violências. Este projeto tenta sacramentar este triste status quo de violências de gênero; em vez de oferecer reparação, assegurar às meninas, jovens e mulheres o pleno exercício de seus direitos e contribuir com uma sociedade livre, justa e solidária, o senador busca somar às violências, forçando a convivência diária com o trauma. O Estado prefere pagar pelos frutos do crime sexual, efetivamente recompensando o agressor nesta Bolsa Estupro, para não precisar fazer a Justiça necessária à sociedade e trazer reparação à vítima de violência, apenando as mulheres ainda mais. É a institucionalização do genocídio feminino.
NÓS: O que as mulheres precisam fazer em um momento como esse?
Amarílis: Barulho. Precisamos nos mobilizar ao máximo, mostrando aos senadores e deputados que não queremos nem precisamos de um absurdo destes. O Senado colocou o projeto em Consulta Pública e podemos deixar nossa opinião por lá, não apoiando o projeto; podemos encher as caixas de mensagens dos senadores com nossos recados; podemos usar as redes que temos e dar força a esse não colossal. Também podemos produzir notas técnicas de análise do PL, sobre a constitucionalidade, sobre a congruência dele com tratados que assinamos e outros, endereçadas aos parlamentares. A deFEMde (Rede Feminista de Juristas) está ainda pensando em mais coisas; é possível judicializar, internacionalizar a questão junto a OEA (Organização do Estados Americanos, ONU (Organização das Nações Unidas) e outras organizações, e outros mecanismos. Estamos pensando os canais e articulando as melhores formas de ação.
Nós: O aborto em caso de estupro e risco à vida da gestante é garantido por lei desde 1940. Por que estamos dando passos para trás mesmo tendo o assunto como um direito?
Amarílis: É importante pensar e repensar os conceitos e contextos deste projeto, bem como compreender o intento de quem o redigiu. O senador em questão se elege numa plataforma “pró-vida”, que na realidade é pró-manutenção do Patriarcado; após o choque nacional com uma violência sexual contra uma criança e um maior interesse da população sobre o aborto, a proposta é apresentada; e em face da decisão do parlamento Argentino, o senador fica mais diligente e assertivo para que se apresente seu projeto em plenário. Há um intento de garantir que o direito de escolha não seja um direito – algo que se expressa no projeto. Há o intento de objetificar as mulheres, considerando que são poucas as menções a elas no projeto e na justificação – o foco está no que o senador chama de “capital humano em desenvolvimento”, ou seja, os fetos. Há um intento de naturalizar a violência sexual, e de institucionalizar as violações de direitos das mulheres. As repercussões nacionais e internacionais – considerando que o Brasil é signatário de uma série de tratados e convenções de proteção aos direitos das mulheres, que incluem o aborto seguro e legal, e cujas provisões, já integradas ao nosso ordenamento jurídico, coíbem arroubos legislativos como este – podem ser catastróficas e isolar ainda mais o país. Há um intento nefasto de alinhar as políticas de gênero no Brasil a países extremamente conservadores, e de institucionalizar ainda mais as violações de direitos humanos, já popularmente marginalizados. A movimentação – que não está só, considerando o conjunto de projetos eugenistas e racistas em pauta, como a esterilização cirúrgica, em discussão na Câmara dos Deputados – é mais um passo na jornada de retrocessos políticos e sociais na qual estamos desde a Lei 13467/2017 da reforma trabalhista, e visa caracterizar o Brasil como um país totalitário, onde a população não tem vez e voz de nenhuma forma.
Nós: O PL irá criar barreiras na assistência integral para as mulheres e meninas que sofreram abuso sexual. Como assegurar o direito à saúde pública e vida das mulheres?
Amarílis: Ele foi meticulosamente desenhado para impedir acesso ao exercício de direitos por muitas meninas, jovens e mulheres; para além dos casos de violência sexual, onde o projeto se debruça de forma bastante peculiar, gestações de risco terão de ser levadas a termo, independentemente do estado da mulher, e o abortamento em razão de anencefalia do feto, também. É bom lembrar que o projeto prevê a responsabilização criminal de quem “causar danos à criança por nascer”, ignorando completamente os dispositivos pertinentes ao aborto legal. O médico que realizar o procedimento profilático em razão de uma gestação de risco está sujeito a processo criminal; o médico que realizar cirurgia de retirada de feto anencéfalo, também. Então a Medicina fica amarrada, e acaba por não efetivar o acesso a este direito. É importante que se criem redes de apoio e conscientização na saúde pública, e que elaborem mais políticas públicas de amparo a meninas e mulheres em situação de violência, e que fortaleça a defesa da Medicina que salva vidas – esta que não se furta de assegurar às vítimas de violência seu direito mais básico: o direito de ter voz e de ter acolhida nos piores momentos de suas vidas.