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Em algum lugar, alguém fica mais rico

Em setembro de 2024, sobrevoei o Mato Grosso pela primeira vez. Durante o voo, que partiu de Guarulhos, quase não era possível enxergar muito além devido à baixa visibilidade causada pela fumaça das queimadas que estavam ocorrendo em massa no país durante o período. Só passei mesmo a enxergar a paisagem através da janela do avião no fim do voo, ou seja, apenas quando estava chegando em Várzea Grande, cidade vizinha de Cuiabá. O território abaixo de mim era uma grande colcha de retalhos de grandes áreas desmatadas e alguns focos de incêndio ativos.

O meu sonho em conhecer o Pantanal foi atravessado por uma seca histórica, a pior desde o início dos registros que começaram a ser feitos em 1950, de acordo com o Cemaden (Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais). Passei parte das minhas férias dentro da maior reserva privada brasileira e não consegui ver o céu um único dia, pois ele estava coberto por uma densa camada de fumaça, resultado da carbonização de animais e de uma flora diversa que acabaram se transformando em uma grande nuvem de partículas tóxicas.

Em algumas manhãs, eu acordava com o cheiro da fumaça invadindo o meu quarto, ainda que não estivesse perto de nenhum grande foco de incêndio. Sair de espaços fechados durante o pico de insalubridade do ar apenas por alguns minutos já me causava dor de cabeça e mal-estar, o que me fazia pensar na situação das pessoas que moravam nas cidades por onde passei para chegar até a reserva. Explico: foram três horas de van de Várzea Grande até Poconé, cidade onde fiquei hospedada. Poucas árvores e muito pasto na estrada. Muitas famílias aparentando grande pobreza material. 

Na classificação do Painel de Monitoramento de Pobreza, Poconé é uma cidade considerada de alta vulnerabilidade, ou seja, entre os 33.315 habitantes, muitos estão abaixo da linha da pobreza. Como essas pessoas iriam se proteger da fumaça? Qual a chance dessas pessoas comprarem soro, máscaras PFF2, umidificadores e inaladores em vez de priorizar gastos básicos dentro de casa? Como elas iriam pensar nesse tipo de proteção sem o mínimo de orientação da Secretaria de Saúde? Quando o Ministério da Saúde iria distribuir gratuitamente máscaras e soro para as pessoas que não podem comprar esses itens?  

Escolhi setembro para visitar o Pantanal porque é o período indicado para quem busca observar animais. Devido ao período de seca, eles costumam ficar próximos de fontes de água e nada melhor para avistá-los do que se hospedar nas margens do Rio Cuiabá. Vi muitas espécies diferentes de aves, uma jaguatirica e até uma espécie de esquilo endêmica da América do Sul. Também refleti muito sobre como o cenário que eu estava experienciando impactava no dia a dia desses bichos. Os que não morreram carbonizados ou ficaram gravemente feridos acabaram perdendo seus esconderijos, suas tocas, seus ninhos e vão encontrar dificuldade para acessar água e comida em um período de escassez. Setembro também é época de reprodução de muitos animais. Nesse contexto, espécies em processo de extinção podem ficar ainda mais vulneráveis. 

Em um dos passeios que fiz na reversa, um dos poucos realizados para não pôr os turistas em perigo por causa da estiagem e das queimadas, conversei com João, educador ambiental e morador da cidade de Poconé. João trabalha no espaço há quase dez anos e relatou que essa foi a pior seca que já presenciou. No entanto, afirmou que o Pantanal é forte e se regenera rápido. Já na primeira chuva, tudo voltaria a ficar verdinho, mas com menos diversidade. Com o fogo, apenas as árvores mais resistentes sobrevivem e plantas mais sensíveis têm mais dificuldade para voltar a brotar. Muitas sementes e vegetações rasteiras acabam se perdendo. Por consequência, a fauna também entra em desequilíbrio, ficando mais silenciosa e reduzida.

Fui embora do Pantanal com um misto de sentimentos: ao mesmo tempo que estava me sentindo muito maravilhada com a beleza daquele espaço, fui impactada pelo tamanho da destruição causada pela ação humana. 

Nascer do sol às margens do Rio Cuiabá

Antes de voltar para São Paulo, também visitei o Parque Nacional da Chapada dos Guimarães. Com o fechamento das trilhas autoguiadas por causa dos incêndios, contratei um guia para realizar outros passeios dentro do espaço. Apesar de estar em uma área de conservação que estava parcialmente em chamas, caminhando pelas trilhas no topo das chapadas pude vislumbrar uma pequena faixa de um lindo céu azul que resistia contra o avanço da fumaça. No topo da Cidade das Pedras, ao olhar para a grande extensão de terra diante de mim, araras vermelhas sobrevoavam o parque antes de pousar no ninho entre as formações rochosas. Também mergulhei no Rio Claro e no Rio Paciência na companhia de curiosos filhotes de peixe pintado. Foi um espetáculo. 

No trajeto de volta a Cuiabá, no entanto, a fumaça, que tinha ficado para trás durante o dia, voltou com tudo. E, em uma das principais entradas da cidade, vi uma cena que me chocou muito: em um terreno completamente queimado, sem uma folha verde para contar história, um outdoor enorme fazia a única sombra para quem passava na calçada. O outdoor mostrava a propaganda de uma construtora de mansões de alto luxo, dando um tom apocalíptico ao terreno destruído pelo fogo. (Não tirei foto da propaganda, mas você pode conferir o outdoor nesta reportagem da Agência Pública que conversa muito com o que estou pontuando até aqui. Vale a leitura).

Sempre acompanhei pelos jornais a devastação causada pelo agronegócio exportador de commodities, porém nunca tinha vivido ou visto com os meus olhos o que é que vai ao chão para subir uma plantação de soja ou para abrir um pasto. Nas estradas que cortam o estado, é muito chocante ver que a devastação para gerar produtos não tirou as cidades do empobrecimento. Vi nas cidades pelas quais passei muita desigualdade. Enquanto muitos esperam pelo ônibus sob o sol escaldante em filas enormes, há poucos circulando em carros importados pelas avenidas e estradas. Enquanto muitos na cidade sofrem com o calor extremo e com infraestrutura muitas vezes precária, são poucos os que desfrutam de uma casa confortável com ar condicionado e piscina para se refrescar em condomínios fechados. Toda essa destruição irá deixar alguém em algum lugar ainda mais rico.

Foi difícil não se deixar abater com uma região ainda mais abandonada pelo poder público do que nossa São Paulo, também esquecida pelos governantes.

Mas por que a Casa 1 está falando disso? Bom, sou uma mulher lésbica da classe C, que saiu do interior do estado de São Paulo para viver na capital. Estou na Casa 1 desde 2018 atendendo pessoas em situação de rua e vulnerabilidade no centro, vendo passar por ali pessoas que dependem do projeto para acessar um copo com água potável, sem a possibilidade de dormir em um espaço com cobertura em noites de tempestades, sem poder fechar a janela de casa para se proteger da fumaça e do ar insalubre. Essas já são as pessoas que mais sofrem com os efeitos do clima extremo. E você, pessoa que está lendo, a não ser que seja uma grande concentradora de renda, é o próximo dessa lista. Mesmo morando em grandes centros urbanos, seremos, sim, muito impactados com todas essas mudanças, quer queiramos ou não.

Apesar do tom um tanto quanto pessimista dos parágrafos anteriores, não quero encerrar este texto de uma forma negativa. Não acredito e não engajo em discurso fatalista. Existem grupos que se beneficiam dessa retórica de desistência que querem, sim, que entreguemos os pontos e só pensemos em novas formas de consumir porque “o mundo está acabando”, que querem ganhar dinheiro com a nossa tristeza. Seria mais fácil se o mundo realmente estivesse acabando e nós, grandes mamíferos (sim, somos animais), desaparecêssemos de uma vez. Mas não é isso que vai acontecer. A tendência é termos um planeta cada vez mais hostil e desafiador para a vida. Vamos sofrer muito antes de morrer. E ainda temos muito chão pela frente. Sei que é difícil pensar nisso enquanto enfrentamos um cenário devastador do lado de fora, porém precisamos nos guiar por pessoas que sabem do que estão falando e sabem quais decisões precisamos tomar e agir agora. Chega de ecoar as blogueiras do fim do mundo! 

Precisamos nos reconectar com a natureza ao nosso redor, lembrar que o nosso alimento e a nossa água vem do chão, que por baixo de todo esse asfalto e cimento passam nascentes, rios e muita vida. Também é urgente que todas as pessoas que queiram continuar vivendo defendam a demarcação dos territórios indígenas e o direito das comunidades ribeirinhas e quilombolas. Povos tradicionais são responsáveis por impedir uma devastação ainda maior do que restou dos nossos biomas – segundo uma pesquisa do Instituto Socioambiental (ISA), nos últimos 35 anos, as Terras Indígenas protegeram 20% do total das florestas nacionais. Não vou me estender em ações individuais, não porque não acredito no impacto que elas têm a longo prazo, mas porque precisamos focar em voltar a nos unir no coletivo. Parte da atual inércia que estamos experienciando é porque esquecemos que existem lá fora muitas pessoas dispostas em manter este mundo o mais habitável possível e é importante nos unirmos a elas!

Encerro este texto com a recomendação de alguns coletivos que conheço aqui em São Paulo e deixo algumas referências de textos incríveis que alimentam a minha vontade de continuar lutando por um mundo menos hostil em tempos tão difíceis. E deixo um espaço especial para a Juliana Gomes, jornalista responsável pelo projeto Comida Saudável pra Todos, que lapidou a minha opinião sobre clima, agroecologia, veganismo, monocultura e bem-viver nos últimos anos. 

Convido você que chegou até aqui a consultar esses materiais e a se deixar sensibilizar com este tópico. Não podemos mais ignorar todas as questões climáticas e continuar acreditando que quem pauta isso são “eco chatos” e que nada mais pode ser feito. É urgente que nossa mentalidade coletiva sobre o colapso climático  mude se queremos viver em um mundo menos hostil à vida.

Título referência à tirinha de Laura Athayde

Para combater as queimadas, Brasil precisa se libertar do Agro

O agronegócio é o principal inimigo do Brasil

Mapa das Feiras Orgânicas e Agroecológicas

Guia de feiras orgânicas e agroecológicas do SESC

Horta Comunitária das Corujas

Cerrado Infinito

Articulação dos Povos Indígenas do Brasil

Parque do Rio Bixiga

Pressione os bancos a cortar o envio de créditos rurais para latifundiários

Taubateana e Jornalista.

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