Por Juliana Salles de Siqueira, voluntária da Biblioteca Caio Fernando Abreu
Se você chegou até aqui, possivelmente as discussões sobre linguagem inclusiva não sejam exatamente uma novidade. No entanto, não é raro sermos tomades por dúvidas quanto ao uso de pronomes neutros em nossas conversações cotidianas: resistindo às regras gramaticais, vistos muitas vezes como erros por interlocutores, nos desafiam também pela nossa própria formação, a partir da qual aprendemos a generalizar o masculino desde cedo, inexpressando nossas próprias identidades ou legando a de outres à inexistência. Embora este seja um tema pautado desde outras gerações feministas, sua projeção no debate público ganhou uma força
ainda maior a partir dos movimentos LGBTQIAPN+, que lançam luz à diversidade humana da expressão de gênero.
Para quem convive com crianças em ambientes diversos, familiar ou profissional, interessando-se por modos de pensar e viver o mundo que não sejam adultocêntricos, os questionamentos sobre o que se reproduz socialmente através da educação des mais noves são inevitáveis – crianças, quando ouvidas e vistas, podem nos levar facilmente a exceder certas representações e convenções com perguntas ou gestos simples, ampliando os horizontes de nossas certezas aprendidas. Assim, ler ou escrever para/com crianças, em conexão com infâncias, pode nos colocar diante de porquês delicados e sérios, bonitos e abismantes.
Na Biblioteca Comunitária Caio Fernando Abreu, há uma pequena seção intitulada “Erê que lê”, onde estão reunidos livros infantis selecionados a partir dos critérios de representatividade estabelecidos pela nossa Política de Desenvolvimento da Coleção. Dessa forma, livros que foram escritos por mulheres feministas, pessoas negras, indígenas, amarelas e LGBTQIAPN+, e que dão visibilidade à importância de suas pautas e existências, também são aqueles que compõem o conjunto das obras disponibilizadas para consulta, leitura (e futuro empréstimo) nesta seção destinada às mais noves.
O livro “Imagináries”, escrito por Pedro Mendonça, com ilustração de Gabriel Villas e publicado pela Ouriço Edições (@ouricoedicoes), de Florianópolis, faz parte do nosso acervo. Desde o título, o livro já anuncia: está escrito em linguagem não-binária. A narrativa conta a história de
Lui e Liu, grandes amigues que faziam tudo juntes. Ao serem questionades “pelos outros” sobre sua existência real (seriam amigues imagináries?), elus se veem diante de um impasse que, com a ajuda de uma lâmpada mágica, irão resolver. Mas… será que isso se resolve por um Gênio? E, se por acaso essas crianças geniais concedessem um direito ao desejo ao tal do Gênio, qual seria o destino dessa história?
A leitura me fez lembrar da expressão des mais velhes: “que gênio você tem!”, e refletir sobre a boniteza da concessão, por Lui e Liu, de um desejo ao Gênio. O gesto ético das crianças que se permitem reivindicar a sua existência estabelecendo com o Gênio uma relação de generoso reconhecimento a partir da simples partilha: “Gênio, a gente só precisa de dois pedidos. Pode ficar com o terceiro”, faz com que esta história, “Imaginárie”, não termine nestas páginas…
O livro “Imaginárie” (2021), de Pedro Mendonça e Gabriel Villas, está disponível para leitura na Biblioteca Comunitária Caio Fernando Abreu, que fica na rua Condessa de São Joaquim, esquina com a rua dos Bororós, no bairro Bela Vista, e em breve também estará liberado para empréstimo – o acervo está passando por um cuidadoso processo de catalogação.