Estudo revela que alimentos in natura e minimamente processados diminuíram 85% em domicílios com insegurança alimentar; muitas famílias não têm mais o que comer
Por Nathália Iwasawa
Muitos meses atrás, a pandemia era encarada com outros olhos. À ideia de que a quarentena duraria 40 dias, ou do fato de os peixes terem voltado a nadar nos canais de Veneza, somava-se uma preocupação com a autoimagem: havia quem brincava, em grupos de WhatsApp, por exemplo, que estava engordando, porque “a única distração” em casa era comer.
Mas essa ideia, além de reforçar um discurso gordofóbico, ignora que muita gente não teria nem um prato de arroz e feijão disponível. O relatório “Efeitos da pandemia na alimentação e na situação da segurança alimentar no Brasil”, publicado nesta terça (13), demonstra que houve uma redução geral da disponibilidade de alimentos nos domicílios em situação de insegurança alimentar, inclusive os considerados não saudáveis. Ou seja, nem os ultraprocessados mais baratos, como miojo e biscoito recheado, têm garantido que a fome fique longe.
Há alguns meses estamos ouvindo especialistas e conversando com trabalhadores para entender o que sobra no prato das famílias em situação de vulnerabilidade social em tempos de Covid-19. Os pesquisadores do Grupo de Pesquisa “Alimento para Justiça: Poder, Política e Desigualdades Alimentares na Bioeconomia”, da Freie Universität Berlin (FU Berlin), trazem a resposta que não queríamos ter: o consumo de alimentos saudáveis diminuiu em 85% nos domicílios em situação de insegurança alimentar durante a pandemia.
A maior redução encontrada pelo estudo foi das carnes, em 44% dos domicílios, seguida de frutas (40,8%), queijos (40,4%) e hortaliças e legumes (36,8%). De acordo com a pesquisa, os ovos podem ter sido substitutos da carne, com o maior aumento entre os alimentos da categoria, em quase 19%.
Cabe destacar que, entre os domicílios que mantiveram segurança alimentar durante a pandemia, a redução do consumo de alimentos considerados saudáveis foi significativamente menor, variando entre 7% e 15%.
Os autores da pesquisa – Eryka Galindo, Marco Antonio Teixeira, Melissa de Araújo, Renata Motta, Milene Pessoa, Larissa Mendes e Lúcio Rennó – destacam que, no período entre agosto e dezembro de 2020, quase 60% dos domicílios entrevistados estavam em algum nível de insegurança alimentar – isto é, quando a qualidade dos alimentos é inadequada ou a oferta é insuficiente. Desses, 15% estavam em situação de insegurança alimentar grave. Objetivamente, isso significa que a fome passa a ser vivida também pelas crianças dos domicílios.
A pesquisa, realizada em parceria com pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e da Universidade de Brasília (UnB), traz dados inéditos sobre o consumo de alimentos inspirado no estudo sobre os fatores de risco e proteção para doenças crônicas, o Vigitel, e nos marcadores do Guia Alimentar para a População Brasileira, ambas publicações do Ministério da Saúde. A pesquisa adotou como referência as perguntas da Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (Ebia).
“A fome é uma opção política”
No evento de lançamento do relatório, os pesquisadores enfatizaram que os números extremamente preocupantes não são fruto (só) da pandemia. “Estamos em uma espiral decrescente”, disse Lúcio Rennó, professor do Instituto de Ciência Política da UnB e um dos autores do estudo, em referência à sistemática crise econômica, ao aumento do desemprego e ao aprofundamento das desigualdades sociais, com repercussões na segurança alimentar e nutricional.
O pesquisador abordou a instabilidade política vivida desde a redemocratização do país, nos anos 80, até as variações negativas do Produto Interno Bruto (PIB) em dois anos consecutivos na última década – 2015 e 2016. O principal medidor econômico do mundo também deu sinais negativos no Brasil no ano passado, amplificado visivelmente pela pandemia.
“Vivemos uma situação de recessão profunda, talvez uma das piores da nossa história”, disse Rennó. “E olha que temos uma longa história de processos recessivos e dificuldades econômicas.”
A crise sanitária, somada à inexistência de um Estado capaz de responder minimamente ao quadro, resulta na maximização dos problemas sociais. Os direitos trabalhistas e outras garantias essenciais a uma vida digna, como saúde e educação, já vinham sofrendo sucessivos ataques.
Aqui, é possível citar a extinção do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) em 2016, que foi um golpe para a agricultura familiar, seguida da Reforma Trabalhista, sancionada em 2017 pelo presidente Michel Temer (MDB), na qual houve a flexibilização da CLT, o que deixou os trabalhadores ainda mais vulneráveis frente aos empregadores.
A pesquisa aponta que o consumo de comida in natura e minimamente processada já era irregular nos domicílios com algum grau de insegurança alimentar. Ou seja, o consumo de frutas, legumes, hortaliças e carnes já era esporádico.
“A pandemia deixou óbvio qual é o projeto de país que se tem e que se implementa de uma maneira muito eficiente”
Durante a sua apresentação, a professora de sociologia do Instituto de Estudos Latino-Americanos (FU Berlin) e líder do grupo de pesquisa responsável pela pesquisa, Renata Motta, destacou que “a fome é uma escolha política”. A docente lembrou que o sucateamento do PAA e do PNAE, além da extinção do Consea – a primeira medida tomada pelo presidente Jair Bolsonaro assim que assumiu o Executivo em 2019 –, foram decisões que ignoraram anos de acúmulo de políticas sociais e movimentos importantes da sociedade civil organizada.
Os dados têm cor, gênero e endereço
Motta também lembrou que “a insegurança alimentar tem cor, gênero e espacialidades”. A afirmação vem dos números, que são bem claros: em lares onde a mulher é a única responsável pela renda, a insegurança alimentar é mais grave (73,8%); a situação se repete em domicílios chefiados por pessoas de raça ou cor parda (67,8%) e preta (66,8%); e em lares localizados nas regiões Nordeste (73,1%), Norte (67,7%) ou em áreas rurais (75,2%).
Em entrevista para esta reportagem, o Grupo de Pesquisa salientou que o fenômeno não pode ser reduzido a uma única área, sendo fundamental o olhar ampliado e interdisciplinar que ocorria anos atrás.
“A pandemia deixou óbvio qual é o projeto de país que se tem e que se implementa de uma maneira muito eficiente”, disse Elisabetta Recine, professora e coordenadora do Observatório de Políticas de Segurança Alimentar e Nutrição da UnB. Recine pondera que o Brasil entrou na pandemia com reduções drásticas dos principais programas e políticas públicas, que garantiram não só a melhoria dos indicadores da qualidade da segurança alimentar e nutricional no país, mas da qualidade de vida em geral. “Essa fome, no final, é produto de um momento agudo, que é expressão de uma situação crônica nesse país.”
A saída apontada pelos autores da pesquisa é justamente um projeto político que retome os programas sociais como prioridade de gestão, como a “reforma agrária, transferência de renda, de acesso ao mercado de trabalho, à saúde, saneamento básico, acessibilidade e disponibilidade de alimentos. E, por fim, equipamentos públicos como os restaurantes populares, cozinhas comunitárias e os bancos de alimentos”.