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Alta do Deposteron e falha do SUS afetam tratamento hormonal de homens trans

Por Romero Rafael

Oliver Severiano, 27, homem trans, já não sangrava havia dois anos e meio, mas o seu ciclo menstrual voltou a se apresentar na primeira quinzena de fevereiro, após interromper o tratamento de terapia hormonal com testosterona. As cólicas também retornaram, e desde então tem vivenciado um acumulado de sintomas e sentimentos. Perguntado sobre seu estado, ele responde: “Acabado. Impaciente. Inchado. Triste. Instável. Disfórico”.

A suspensão da terapia hormonal de Oliver foi impositiva. Em agosto do ano passado, o Deposteron — nome comercial do cipionato de testosterona, remédio fabricado pela farmacêutica EMS — teve seu preço superinflado em quase 500%. O medicamento usado pela grande maioria dos homens trans no Brasil e também por homens cis com produção deficitária do hormônio passou de R$ 50 para cerca R$ 250.

O analista de sistemas fazia a reposição a cada 21 dias, tempo máximo em que o Deposteron segura a produção de estrogênio, um dos hormônios mais presentes no corpo feminino. Após a alta do preço, ele conseguiu comprar duas caixas (cada uma com três ampolas) e parcelou a soma na fatura do cartão de crédito. Quando pagou a última prestação, o hormônio para seguir com o tratamento já havia acabado muito tempo antes. 

Embora a portaria nº 2.803 do Ministério da Saúde, assinada em 19 de novembro de 2013 pelo então ministro Alexandre Padilha, tenha redefinido e ampliado o Processo Transexualizador no SUS (Sistema Único de Saúde), validando a hormonioterapia no atendimento ambulatorial, a testosterona não é disponibilizada por toda a rede pública. Isso varia de cidade para cidade. 

No caso de Oliver Severiano, há um muro estreito, mas alto, que o separa do acesso ao tratamento hormonal gratuito. O jovem reside no município do Paulista, na Região Metropolitana do Recife, que não disponibiliza o hormônio em seus postos de saúde. A Prefeitura do Recife oferta, mas apenas para aqueles que comprovam residência na capital pernambucana.

A política pública é cumprida pela Secretaria de Saúde do Recife por meio do Ambulatório LGBT Patrícia Gomes, localizado na Policlínica Lessa de Andrade, no bairro da Madalena, Zona Norte da cidade. De acordo com a assessoria de imprensa da pasta, o município adquire o Deposteron com recursos próprios.

O ambulatório funciona com uma equipe multidisciplinar, como recomendado pela portaria que define o Processo Transexualizador, e, desde a sua abertura, em 2017, até dezembro de 2022, atendeu 295 homens trans. 

Morador de Olinda, município vizinho ao Recife, Cadu Araújo, 29, também não tem acesso ao Deposteron pelo SUS. E por causa do encarecimento, o gerente de vendas continua o tratamento por uma via alternativa: ele adquire a medicação por um contato que a repassa por R$ 100. Assegura que se trata da mesma substância, mas desconhece o porquê do valor abaixo do de mercado.

O analista de sistema Oliver Severiano
Acervo pessoal

Por que encareceu?

A alta do preço do Deposteron coincide com duas movimentações de mercado. A primeira delas foi o “sumiço” do concorrente Durateston, fabricado pela Schering-Plough, que é mais barato por conter apenas uma ampola em vez de três. Esta droga, no entanto, deixou de ser fornecida durante a pandemia, quando o laboratório redirecionou sua linha de produção para medicamentos ligados ao tratamento de Covid-19.

Outro movimento que pode contribuir para a alta do preço é o uso de testosterona para performances esportivas. Um personal trainer, com a experiência de quem frequenta academias diariamente e lida com alunos diversos, comentou, em reserva, o que observa: “De certeza, hoje o número de pessoas usando esteroides com acompanhamento médico cresceu exponencialmente”.

O médico endocrinologista Marcos Almeida confirma: “A demanda por uso para performance esportiva tem aumentado consideravelmente nos últimos anos, e por ser uma droga relativamente barata, e de relativo fácil acesso, o Deposteron passou a ser vendido em todas as farmácias. As pessoas que buscam performance física com hipertrofia muscular, com uso de anabolizante, compram testosterona num mercado paralelo. Já as pessoas que querem algo, digamos, mais seguro, compram Deposteron”.

“Vários endocrinologistas prescrevem, embora a Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia condene — há, inclusive, o programa ‘Bomba, Tô Fora’. Nutrólogos, que eram para trabalhar apenas com a parte alimentar, também prescrevem, embora a Associação Brasileira de Nutrologia também seja contrária”, completa.

Preço não condiz com qualidade

Apesar de cercado por uma ampla procura, “o Deposteron não é o mais adequado [para o tratamento de terapia hormonal]”, afirma Marcos Almeida. “Assim que o Deposteron é aplicado, há um pico [de atuação do medicamento] em 24, 36 ou 48 horas, com efeitos exacerbados de irritabilidade, agressividade e aumento da libido, que, no final da segunda semana, já começam a baixar. O fato de subir muito e cair progressivamente dá uma ciclada de sentimentos e efeitos físicos”, explica o endocrinologista.

O endocrinologista avalia que o tratamento ideal para pessoas transmasculinas seria com Nebido (undecilato de testosterona, da Bayer, com preço de tabela superior a R$ 750), medicamento que possui dois similares: Atesto (Supera Farma) e Hormus (Eurofarma), ambos vendidos por cerca de R$ 490. Assim como o Deposteron e o Durateston, essas drogas são injetáveis, mas são usadas a cada três meses, em vez de duas ou três semanas, como no caso dos dois mais baratos.

“Depois que injeta, o hormônio fica no sangue por até três meses. Então, no homem cis ou trans que usa Nebido os seus similares, desaparecem os efeitos do pico que o Deposteron causa. O humor é mais estável e a libido também, assim como o sentir-se masculino”, explica, se referindo ao surgimento de pêlos e o desenvolvimento da musculatura. 

Sem a adequada reposição de testosterona, a pessoa pode sofrer a perda de características já conquistadas e ter de volta o ciclo menstrual, como aconteceu com Oliver Severiano. “Infelizmente, eu vou ter que lidar com tudo isso enquanto não puder comprar”, diz o analista de sistemas. 

Embora haja portaria do Ministério da Saúde validando a hormonioterapia no atendimento ambulatorial, a testosterona não é disponibilizada por toda a rede pública. /Agência Brasil

Cobrança das entidades

O Instituto Brasileiro de Transmasculinidade (Ibrat), em agosto de 2022, iniciou a petição “Abaixem o preço do Deposteron”, junto com a Associação Brasileira Profissional pela Saúde Integral de Travestis, Transexuais e Intersexos (Abrasitti). “A ausência do Estado dificulta o nosso acesso a partir da obrigação de adquirirmos por meios próprios nas farmácias pelo preço cobrado regularmente, considerando que muitos de nós não têm acesso a empregabilidade e também pelas constantes mudanças no setor e/ou a suspensão de venda por períodos indefinidos, o que nos deixa bastante apreensivos se iremos ou não conseguir dar prosseguimento às doses necessárias”, diz um trecho do texto.

O abaixo-assinado foi enviado no dia 30 de janeiro deste ano aos ministérios da Saúde e dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) – este último, abriga em seu guarda-chuva a Secretaria Nacional dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+, chefiada por Symmy Larrat, ativista transexual e ex-presidente da ABGLT (Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos).

A mobilização possibilitou uma reunião remota do Ibrat com o MDHC, no dia 10 de fevereiro. Encontro que, para o coordenador do Comitê de Ética do instituto, Gabriel Reiznaut, vai “ajudar na cobrança de posicionamento de outros ministérios”. “Vamos solicitar uma reunião com o Ministério da Saúde para colocar nossos pontos e tentar articular alguma medida.”

Em nota à Agência Diadorim, a Secretaria Nacional dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+ informa que “recebeu a demanda do Instituto Brasileiro de Transmasculinidades sobre o aumento no custo do Deposteron” e que irão “iniciar um canal de diálogo, uma vez que o medicamento é de extrema importância para a população transmasculina”.

Além do Ibrat, a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) também encaminhou ao Ministério da Saúde, no dia 25 de janeiro, um ofício sobre a questão. “Desde 2008, o SUS oferece hormonização gratuita para mulheres trans e, a partir de 2013, também para homens trans e pessoas transmasculinas. Mas nunca houve regulação e a efetiva dispensação da medicação ou padronização no SUS”, consta num trecho.

“Diante da essencialidade do medicamento e da necessidade de buscar soluções em todos os níveis federativos, solicita-se [à ministra Nísia Trindade] que avalie medidas para buscar a inclusão do composto na lista de medicamentos fornecidos pelo SUS”, continua.

A Antra identificou, ainda, que, na nova estrutura do Ministério da Saúde, “não constam quaisquer informações nem menção ou localização da Política Nacional de Saúde Integral LGBT (PNSILGBT), nem mesmo sobre o Processo Transexualizador”.

O Ibrat não enviou o abaixo-assinado à EMS. Mas a farmacêutica, em nota divulgada em setembro, mostrou um posicionamento intransigente, ao justificar que “o Deposteron possuía um teto inicial de precificação que seguiu defasado por todo o período [de 1992, quando o medicamento obteve registro sanitário, até agosto de 2022]”.

A vertiginosa subida no valor do Deposteron foi permitida por uma liminar do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1), sediado no Distrito Federal. O reajuste ultrapassa o percentual de 10,89% estabelecido como teto pela Câmara de Regulação do Mercado de Medicamento (CMED), conforme anúncio feito em abril do ano passado pelo órgão interministerial responsável pela regulação econômica do setor.

Foto de capa: Reprodução

Acesse o site da Agência Diadorim

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