Por Florence Belladonna Travesti para o Laboratório de Linguagens e Diversidade Sexual
O amor das amizades queer, em comunidade… É nessa comunidade que forma-se ao meu redor, e que eu também formo em outras pessoas, que eu gostaria de tratar hoje. Aqui eu disponho, exatamente, da crença entre verdades e existências mútuas, da amizade enquanto uma estética da existência, como aquela que nos ensinou Michel Foucault.
Numa perspectiva marginal, ou pelo menos que não tem referências hegemônicas, poder dizer “te amo, amigo”, “estou aqui contigo”, e saber que neste amor fraternal está um pacto de força, de ativismo, de posicionamento político, que não tem preço, em um tempo que o amor anda fraquejado, vítima de conturbações políticas.
Obviamente o amor, enquanto uma estética da existência, é algo construído. O “eu te amo, amigo”, banalmente dito à torto e direita, como quem diz “eu gosto de você”, não é a mesma coisa de quem diz, “eu gosto de você e estou aqui contigo, por isso, eu te amo”. Aqui, há uma tonalidade diferente de crença no que se pode fazer, sempre à frente, com a amizade e com a política.
Às vezes, eu ouvia de familiares que “amigo” mesmo é a “família”, que está ao nosso lado em tempos ruins. É contraditório, se pensarmos que em muitas famílias de pessoas LGBTs, há enrascadas sentimentais que são colocadas por pessoas consanguíneas e que, deparando-se e tentando lidar com isso, é a nossa família de amigos que nos ampara.
Nessa relação entre amizades enquanto família, têm algo de bonito que a gente aprende: a espontaneidade. A espontaneidade é um traço das relações sociais afetivas que se consolidam quando a gente tem total confiança em quem nos vê. É como estar totalmente desnuda, indefesa e naturalmente forte ao mesmo tempo.
A espontaneidade das relações afetivas também tem algo de descolonial, de indomável, é não deixar que a docilização sobre os corpos triunfe. É não auto-docilizar-se.
Durante algum tempo da minha vida, quando as amizades queer ainda eram escassas, havia especulações do tipo “será ela carente?”. Não… Acho que é porque, entre o amor e a política, ou o amor enquanto política, ou mesmo a política bondosa enquanto amor, a amizade é forjada em situações limites… O próprio ativismo que permeia o amor e a política entre pessoas queer, é o forjo entre a sobrevivência e o gozo. Há uma diferença aí, em não banalizar a palavra amor, e cultivar respeito às diferenças, mesmo que seja-nos dito a todo momento que ninguém ama as diferenças.
O amor queer da amizade é como o amor de uma criança, enquanto existência estética que não passa pelo crivo de olhares nem de provas, mas da crença pura da vontade de fazer, daquela que tínhamos só quando éramos pequenos, como quem diz “eu acredito em você e também estou aqui. E agora, vamos brincar?”. Em contrapartida, o “prove-me que ama-me” é uma invenção dos adultos, dos políticos e dos que se deixaram convencer pelas más políticas.
Crianças, assim como amores queer, não provam nada umas às outras, elas só andam juntas e brincam. E quando cansam, vão para casa descansar, e depois voltam. O amor da amizade enquanto estética da existência é isso, é o que se diz sem necessidade de provas, sabendo-se que a outra pessoa jamais teria coragem de fazer uso de fontes incertas, com crenças que ali estão duas pessoas em referências de apoio e confiança. Tudojunto.
Parece estranho e confuso, esse retorno, e realmente é, porque o que está se colocando é a confiança nas palavras enquanto ação transformadora, no ativismo e na luta incessante, em um país que refina a morte.
O que não se perde com isso? Não se perde o vigor, a força e a beleza de lutar, de acreditar, de passar pelos piores furacões, mas mesmo assim olhar para o lado e saber que há alguém contigo, e que nenhuma dor é sozinha, assim como a alegria é conjunta.
A estética da existência de uma amizade é um privilégio compartilhado por duas ou mais pessoas que compreendem e constroem uma ética de existência política, e aí o amor verdadeiro, com palavras vasculares e suculentas, que só existem e estão, como quem diz de alguém que só existe aí, que está aí, e torna-se os próprios fios de ouro de tecido bordado, onde um só consegue dar o ponto se o outro conseguir laçar a linha. Este é amor em amizade recíproco, forjado em sorriso, apesar de uma terra de choros.
Em algumas metáforas, que dão suculência às intenções, também dão suco aos motivos da permanência, da ação de garantia da integralidade física, intelectual e cultural de um povo. É o amor o próprio suco da crença em uma série de ações, ativismos, que mantêm em pé toda a nossa família, para dizer que logo menos estaremos bem. E aí, então, continuaremos fortes, de nutrientes que não fazem sentido para pessoas normais, mas todo o sentido para quem foi socializado enquanto estranha, e descobriu que na realidade não é.
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