O Grupo Galpão, que está com uma programação de peças virtuais em diferentes plataformas, começou seus experimentos com um espetáculo no Telegram, formato inimaginável anos atrás. Agora, a companhia retoma uma linguagem antiga, mas que chega com ares de novidade -a das peças radiofônicas.
Mesmo que “Quer Ver Escuta” seja transmitida pelas rádios Inconfidência e UFMG e retome vinhetas que lembram os velhos programas, a experiência sonora acontece numa época em que o público está distante do aparelho tradicional, como Woody Allen registrou em “A Era do Rádio”.
As paisagens sonoras, também disponíveis nas plataformas de streaming, que o Galpão criou chegam aos ouvidos em meio à explosão dos podcasts e dialoga com isolamento dos fones de ouvido e, principalmente, da pandemia, com registros de barulhos domésticos feitos pelos atores.
São engrenagens do elevador na chegada de um morador, um papel sendo amassado, alarmes que soam na rua e até áudios no WhatsApp que costuram essas vidas em quarentena.
O espetáculo é uma espécie de homenagem à poesia contemporânea brasileira, e esses cenários são costurados a referências aos poetas -o próprio título retoma o mineiro Francisco Alvim e seus versos.
A ideia original era que esse mergulho na produção de poetas vivos brasileiros acontecesse nos palcos, conta a atriz Inês Peixoto. A pandemia, claro, impossibilitou que o projeto fosse para frente, e a pesquisa se tornou sonora.
“Isso abriu nossa percepção para as sonoridades que nos permeiam durante o dia –os sons dos sapatos no chão, o barulho da colher batendo na xícara, da água caindo. Começamos a ‘linkar’ esses sons com algumas experimentações de escrita, e tudo isso em casa. Tínhamos que descobrir os lugares com as melhores acústicas para gravar esse material”, conta a atriz.
Essa não é a primeira experiência do teatro com peças radiofônicas durante a pandemia. Em meio a séries de ficção que retomaram a era das radionovelas no ano passado estão peças gravadas pelo Teatro Oficina, como “Para Dar um Fim no Juízo de Deus”, também gravada na casa dos atores e disponível nas principais plataformas de streaming.
As experiências teatrais sonoras também apontam para outros formatos que não os da radionovelas. É o caso da Cia O Grito, que propõe uma espécie de tour sonoro dentro e fora de casa com “Brás: Memórias e (Des)Memórias de Uma São Paulo Precária”.
É muito mais de um chamado à ação do público do que um convite a imaginar paisagens sonoras, como no caso do Galpão.
Na versão para se ouvir de casa, o narrador evoca elementos que lembram o bairro do Brás, como o trem e os barulhos dos carrinhos de mão, para convocar o público a manusear objetos de sua própria casa e percorrer os cômodos.
A companhia ainda criou outras duas versões para discutir as memórias do bairro paulistano –uma com um passeio pelo próprio bairro e outro dentro da Casa Restaura-me, também no Brás.
“Na versão da rua, a cidade é a protagonista”, afirma a diretora Beatriz Cruz, que já trabalhou com outros áudio tours e foi convidada pelo grupo para criar esse projeto. “O áudio é um fio condutor que provoca o olhar para determinados lugares. Já em casa, há uma relação com o distanciamento social, e se olha para os espaços que você sempre frequenta.”
SÃO PAULO, SP
Foto de Capa: Gabriela Cerqueira