Sete estados brasileiros dizem não possuir números recentes de crimes violentos contra a população LGBTQIA+.
É o que mostra a 15ª edição do anuário produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, um estudo divulgado nesta quinta-feira (15), que mapeia como a violência se propaga no país.
Os 26 estados foram questionados, via lei de acesso à informação, sobre registros de crimes dolosos (quando há a intenção de matar) relacionados à lesão corporal, homicídios e estupros cujas vítimas são lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transgêneros, queers e pessoas não binárias, intersexo e assexuais.
Nos estados de Rio de Janeiro, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Maranhão, Ceará, Rondônia e Rio Grande do Sul, este último sob a gestão do governador gay Eduardo Leite (36), as informações não estavam disponíveis entre 2019 e 2020.
Em São Paulo, a Secretaria de Segurança Pública da gestão Doria (PSDB) não informou as ocorrências de 2020. Isso faz com que o assassinato da travesti Katarina Ariel Silva, 22, por exemplo, não exista como crime contra pessoa LGBTQIA+ nas estatísticas paulistas.
Silva foi morta a facadas em fevereiro de 2020 no Parque do Carmo, na zona leste da capital paulista, onde ela ganhava a vida com programas sexuais. Segundo a Polícia Civil, morreu em uma tentativa de assalto.
No ano anterior, São Paulo diz ter registrado 144 casos de lesão corporal dolosa, 2 casos de homicídio e outros 2 de estupro contra LGBTQIA+. Isolados, os dados dizem pouco sobre a dinâmica dos crimes.
Sergipe e Acre reportaram um caso de homicídio doloso em 2020 cada um mas não é possível saber a evolução de casos, porque as estatísticas de 2019 não foram disponibilizadas. Em Rondônia, o estudo caracterizou o estado com o status de fenômeno inexistente de violência contra essa parcela da população.
Considerando a outra parte dos estados que divulgaram suas estatísticas criminais, houve 1.169 casos de lesão corporal dolosa (+ 21%), 121 casos de homicídio (+25%), e 88 notificações de estupros (+20%) contra pessoas LGBTQIA+ em 2020.
Pernambuco, segundo os dados oficiais, ocupa o primeiro lugar do ranking em número de homicídios, com 39 ocorrências. Foi lá que a travesti Roberta da Silva, 32, teve 40% do corpo queimado por um adolescente no centro do Recife. A vítima precisou amputar os dois braços e, devido à gravidade das queimaduras, morreu no dia 9 deste mês.
Dennis Pacheco, pesquisador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, afirma que a subnotificação estatal das ocorrências demonstra a falta de vontade política de produzir estatísticas que mostrem a dimensão do problema.
Existe uma grande negligência da segurança pública contra as pessoas LGBTQIA+, diz. Sabemos que esses dados oficiais não expressam a realidade, mas já mostram um pequeno esforço no mapeamento dos casos.
E completa: quem segue estimando as violências contra esse público são as entidades da sociedade civil.
A Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) levantou 175 casos de assassinatos de pessoas trans no Brasil em 2020 alta de 41% em relação ao ano anterior. O Grupo Gay da Bahia, que monitora os assassinatos dessa parcela da população desde 1980, localizou 224 homicídios em 2020.
Os números das duas entidades da sociedade civil, que contabilizam as mortes violentas de LGBTQIA+ a partir de casos divulgados pela imprensa, são bem superiores aos 121 homicídios registrados pelos estados na pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Para Pacheco, a invisibilidade oficial da violência pela qual sofre a população LGBTQIA+ tem fortalecido grupos contrários às minorias. “O conceito de contramovimento social dá conta da transformação desses ressentimentos coletivos em plataforma política, transformação que aporta inclusive, rendimento eleitoral às pautas anti-LGBT e anti-feministas”, diz o pesquisador.
“O próprio presidente Jair Bolsonaro [sem partido] mobilizou pautas anti-LGBTQIA+ em campanha e as continua mobilizando ao longo de todo o mandato, o que não é inconsequente. O desdobramento desse tipo de mobilização é o acirramento de conflitos sociais em torno de orientação sexual, identidade de gênero e desigualdades que os tangenciam”, afirma Pacheco.
A análise do Fórum Brasileiro de Segurança Pública também cita os resultados da pesquisa “LGBTfobia no Brasil: barreiras para o reconhecimento institucional da criminalização”. Ela localizou ao menos 34 entraves na responsabilização contra quem comete LGBTfobia no país, crime equiparado em 2019 ao racismo pelo STF (Supremo Tribunal Federal).
As dificuldades giram em torno da falta de vontade política das instituições, que já negligenciavam o combate ao racismo. Elas vão da ausência de produção de dados ou dados de baixa qualidade por má vontade à falta de capacitação no preenchimento de campos relativos à orientação sexual e identidade de gênero.
Também há falhas graves no atendimento às vítimas e ausência de protocolos e capacitação, que reduzem a confiança de que casos de LGBTfobia possam ser resolvidos de fato pelas vias institucionais.
Além disso, a Justiça tende a minimizar o peso dos casos, relativizar discursos de ódio e impedir o avanço das investigações de homolesbotransfobia, tipificando-as como injúria simples, injúria racial ou lesão corporal.
“A inexistência de políticas públicas de promoção de direitos LGBTQIA+ em larga escala contribui para o quadro de mortalidade violenta intencional incontida do segmento no Brasil”, diz Pacheco. “Vivemos num momento de aumento da visibilidade de pessoas negras e LGBTQIA+ nos meios de comunicação de massa, o que possui impactos simbólicos importantes. Essas transformações culturais não chegaram, contudo, ao cerne da intervenção estatal sobre a sociedade.”
OUTRO LADO
A reportagem procurou as secretarias de Segurança Pública dos estados que disseram não possuir dados sobre violência contra a população LGBTQIA+.
Em Minas Gerais, a pasta disse que a sua base de dados ainda não está consolidada. “Trata-se de uma informação autodeclarada e que não é de preenchimento obrigatório, o que dificulta a extração das estatísticas.”
No estado de São Paulo, a pasta de segurança informou que “não comenta pesquisa cuja metodologia desconhece”. Ressaltou, porém, que os registros de ocorrência têm, desde novembro de 2015, campo específico para incluir o nome social e a indicação de homofobia/transfobia. Em 2021, a identidade de gênero e orientação sexual também foram incluídas nos registros.
O Rio Grande do Sul confirmou que os boletins de ocorrência no estado não possuem um código que possibilite um levantamento sistematizado das ocorrências que envolvam a população LGBTQIA+.
“Desde o ínicio do ano, vem sendo estudado, junto com o setor de tecnologia, alterações que integrem um código de fato específico nas ocorrências. Além da questão tecnológica, a inclusão desse novo código demanda a capacitação do efetivo da ponta para a utilização correta dessas informações, o que está em fase de planejamento”, afirmou, em nota, a pasta da segurança gaúcha.
Sergipe, que registrou um caso de homicídio em 2020, também reconheceu a mesma fragilidade. “Está sendo elaborada uma normativa interna para que todos os casos de crimes violentos ou não violentos sejam preenchidos obrigatoriamente, tendo como vítimas pessoas relacionadas ao grupo.”
Mato Grosso do Sul diz que as informações sobre nome social, identidade de gênero e orientação sexual são alimentadas somente com a manifestação dos envolvidos, o que prejudica os dados estatísticos pertinentes ao grupo LGBTQIA+.
O Ceará informou que “vem aprimorando os dados estatísticos criminais referentes à população LGBTQIA+”.
As secretarias de segurança de Acre e Maranhão e a Polícia Civil do Rio de Janeiro não se manifestaram. A pasta de Rondônia disse que precisaria de 72 horas para responder.
GONÇALVES, MG