O número de docentes na pós-graduação mais do que dobrou desde 2004 no país, mas a proporção de mulheres contratadas segue desigual e praticamente estagnada -apesar de elas serem a maioria dos estudantes nos cursos de pós-graduação brasileiros.
De acordo com dados tabulados pela Folha Folha de S.Paulo, o país tinha 33,5 mil docentes contratados para atuar na pós-graduação em 2004 -número que foi para 69,2 mil em 2019. As informações são da Capes, agência do MEC voltada à pós-graduação.
Elas representavam, aproximadamente, quatro em cada dez docentes atuando na pós nas instituições de ensino superior em 2004 (37,6% do total). A taxa subiu um pouquinho e as mulheres chegaram a compor 42,9% dos docentes em 2019. Na média aproximada, no entanto, elas seguem ocupando as mesmas quatro em cada dez vagas de docentes no país.
A minoria feminina entre professoras e pesquisadoras chama atenção especialmente porque, entre estudantes da pós-graduação, elas são maioria há bastante tempo.
Em 2004, mais da metade (52%) dos matriculados em programas de mestrado e doutorado do país eram mulheres; hoje, são 54,5% (os homens eram 48% em 2004 e 45,5% em 2019).
O problema, de acordo com cientistas que têm se dedicado à área, é que, na hora da contratação, um monte de fatores prejudicam as mulheres.
“Estamos falando de viés implícito, estereótipos de gênero, de maternidade. Esse conjunto é fatal para as mulheres”, diz Fernanda Staniscuaski, bióloga do Instituto de Biociências da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul).
Ela é uma das criadoras do projeto brasileiro Parent in Science (do inglês, Parentalidade na Ciência), movimento que surgiu para levantar a discussão sobre a paternidade e, especialmente, a maternidade entre cientistas no Brasil.
Na prática, as mulheres podem ser prejudicadas nos processos de seleção para docentes, especialmente se tiverem filhos. Isso porque, na gestação e na licença-maternidade, que costumam coincidir com a pós-graduação, a produção científica pode cair -mas o currículo das mulheres é avaliado, na disputa pelas vagas, ao lado de outros que não passaram por esse mesmo processo.
Só que não é só isso. As pesquisadoras também alertam para o chamado “viés implícito” dos processos seletivos. São comportamentos inconscientes ou não percebidos que fazem com que se associe, desde criança, características de brilhantismo e inteligência aos homens. Isso, claro, pode levar a uma decisão parcial em um processo seletivo.
O conceito de “viés implícito”, aliás, é a base do “Manual de Boas Práticas para Processos Seletivos”, lançado em 2018 pela UFF (Universidade Federal Fluminense) — inédito no país.
O documento é resultado do grupo de trabalho “Mulheres na Ciência”, que passou a integrar institucionalmente a UFF, sob liderança das neurocientistas da universidade Letícia Oliveira e Karin Calaza. A proposta nasceu de uma iniciativa anterior baseada em um grupo de equidade de gênero na Capes criado em 2018 e descontinuado no novo governo federal.
Nessa época, o Serrapilheira, instituto privado que fomenta a ciência no país, tinha acabado de reconhecer que a maternidade impacta a produtividade científica com algumas iniciativas. Por exemplo, nas suas chamadas públicas de apoio, estendeu em até dois anos o prazo de finalização do doutorado para mulheres com filhos.
“Várias organizações começaram a olhar para esses critérios e se inspiraram”, diz Cristina Caldas, diretora do instituto.”Desde então, algumas universidades brasileiras estão adotando a criação de grupos de trabalho que discutem políticas de apoia à maternidade e as práticas do manual nos seus processos seletivos”, diz Oliveira. É o caso, por exemplo, da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).
Entre as principais recomendações do manual está a diversidade e equilíbrio de gênero nas bancas avaliadoras. “Se a área do edital é tradicionalmente uma ‘masculina’, é recomendável frisar ainda mais o comprometimento com a diversidade e a inclusão”, descreve o documento.
É o caso das chamadas ciências duras, onde as mulheres são minoria até nos cursos de pós-graduação. Entre as docentes, a participação delas em 2019 era a menor do país: 32,9% nas exatas e 35,1% nas engenharias.
Mesmo onde mulheres são maioria entre as docentes atuando na pós -como ciências da saúde, ciências humanas e linguística e letras- há risco de desequilíbrio de gênero nas bancas de processos seletivos. Isso porque tendem a compor esses espaços justamente quem está no topo da carreira. Em geral, os homens.
Os dados da Folha ainda apontam maioria feminina em cargos docentes de áreas sobretudo ligadas à ideia de “cuidado”, como educação, enfermagem, nutrição, psicologia, saúde coletiva e serviço social.
Entre as áreas que cresceram em participação feminina no corpo docente da pós, uma subdivisão da medicina -que inclui ginecologia e obstetrícia, oftalmologia e cirurgia plástica, pediátrica, neurocirurgia e outras- está no topo. Aqui, o número de mulheres dobrou entre 2004 e 2019. Ainda segue, no entanto, baixo: 30,2% do total.
No sentido oposto, 13 sub-áreas do conhecimento perderam participação feminina entre as professoras de pós-graduação. O recorde está em “astronomia e física”, que perdeu 15,4% de docentes mulheres no mesmo período. Em 2019, só um em cada dez professores de pós na área era mulher.
Para as especialistas, a pandemia de Covid-19 pode piorar ainda mais a participação feminina entre docentes da pós-graduação. “As mulheres [alunas da pós-graduação e pós-docs] estão produzindo menos neste período -mesmo quem não é mãe”, diz Staniscuaski. “Nos próximos anos, a competição será ainda mais injusta.”
Foto de capa: a biologa Fernanda Staniscuaski. Reprodução Facebook.