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Enquanto Brasil volta pro Mapa da Fome, redes de supermercados batem recordes de lucro

Melhor ano de vendas para o setor tem lucro recorde de grandes redes ao mesmo tempo em que arroz e feijão estão sumindo da mesa dos brasileiros; medo de contrair covid e pouca proteção em estabelecimentos cheios preocupam funcionárias

Por Lola Ferreira e Flávia Bozza Martins*

Todo brasileiro que chefia uma casa e vai às compras toma um novo susto a cada vez que chega ao supermercado ou abre o aplicativo: batata, arroz, óleo, carne e outros itens básicos para a alimentação de uma família registraram aumento considerável em 2020. Na análise dos 35 itens mais vendidos nos supermercados brasileiros, houve um aumento de 21% entre 2019 e 2020. Em meio à pandemia de covid-19 e à confirmação do retorno do Brasil ao Mapa da Fome, esse aumento de custo se reflete em maior insegurança alimentar, ao mesmo tempo em que o lucro dos supermercados não implica, necessariamente, em melhores condições de trabalho ou em mais segurança trabalhista para os funcionários destes estabelecimentos. Essa reportagem é um desdobramento das análises para o estudo “Cenários e possibilidades da pandemia desigual em gênero e raça no Brasil”, realizado pela Gênero e Número em parceria com o Instituto Ibirapitanga.

“Com tudo fechado, as pessoas passaram a ir mais ao supermercado”, diz Norma Bonfim, 46 anos, que trabalha há cinco como operadora de caixa em uma grande rede no Rio de Janeiro. Além de alterar o comportamento do consumidor, a crise sanitária obrigou os supermercados a investirem em medidas de proteção aos funcionários que, de acordo com Bonfim, na maioria das vezes se limitou à distribuição de álcool em gel. 

“Algumas redes obrigam os clientes a entrarem de máscara, outras não. Se eu trabalho de máscara e um cliente não está protegido, não adianta, porque é proteção coletiva. Todas as minhas colegas de trabalho pegaram covid-19, e o que vimos é que os mercados não dão nenhum suporte extra. Nem na questão da alimentação, que precisamos investir mais, por precisar de uma alimentação mais saudável e reforçada. A gente fica de atestado e pronto”, conta Bonfim, que acredita que a ação dos supermercados poderia ser diferente, já que “houve uma maré boa”.

Trabalhadoras de supermercados acreditam que suporte durante pandemia não foi suficiente | Foto: Procon/RO
Trabalhadoras de supermercados acreditam que suporte durante pandemia não foi suficiente | Foto: Procon/RO

Mesmo sendo muito cedo para quantificar em nível nacional os problemas como os relatados por Norma Bonfim, dados mostram que as mulheres estão em postos de trabalho mais precarizados e atingidos pela pandemia: elas são maioria entre os trabalhadores de comércios e mercados (58%) e nas funções de apoio administrativo (62%), de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua) do último trimestre de 2019.

O livro “Donos do Mercado: Como os grandes supermercados exploram trabalhadores, fornecedores e a sociedade”, de Victor Matioli e João Peres, traz relatos e informações sobre essa precarização. Na publicação, os jornalistas expõem a dificuldade da rotina dessas mulheres, como a possibilidade de ir ao banheiro somente duas vezes ao dia e o fato de ocuparem funções consideradas “menos relevantes”, além do receio constante da exposição ao coronavírus em supermercados cheios e com pouca proteção. Matioli e Peres também analisam os relatórios do Grupo Pão de Açúcar, que mostraram que em 2018 o salário mais alto do grupo era 150 vezes maior que o salário mais baixo.

E com a pandemia, os lucros dos supermercados só aumentam, apesar da perda de postos de trabalho e renda instável para os brasileiros. No comparativo do trimestre entre setembro e novembro de 2020 com o mesmo período do ano anterior, todo o comércio (não incluindo bares e restaurantes) perdeu 10,4% dos seus postos de trabalho, o que significa cerca de 1,9 milhão de pessoas trabalhadoras no comércio desempregadas. O Grupo Pão de Açúcar teve lucro de R$ 1,59 bilhão no último trimestre de 2020, um aumento de 58,5% em relação ao mesmo período de 2019. Já o Carrefour registrou lucro de R$ 935 milhões, um aumento de 47% em relação ao último trimestre do ano anterior.

Impacto do auxílio

Além do lucro e da informação do alto fluxo de clientes, citada por Bonfim, há outro exemplo do ano dourado para os supermercados brasileiros. O índice geral de vendas, calculado pela Associação Brasileira de Supermercados (Abras) — como o custo dos 35 itens mais vendidos —  disparou em 2020: os supermercados venderam 9,36% a mais do que em 2019, o maior aumento anual da categoria em 20 anos. Os números já são corrigidos pela inflação. De acordo com a Abras, o cálculo é feito em um universo de mais de 2.800 lojas. Em nota à imprensa, Márcio Milan, vice-presidente da Abras, disse que as medidas de isolamento social influenciaram os brasileiros a “mudar seus hábitos, contribuindo com o aumento do consumo dentro do lar”. 

Líderes do setor e a Abras também acreditam que o auxílio emergencial foi responsável pelo pico de vendas, já que a principal linha de gastos para os beneficiários é realmente a alimentação, de acordo com o Datafolha. Na pesquisa feita pelo instituto em agosto de 2020 sobre o tema, 53% dos respondentes afirmaram que gastaram os R$ 600 do auxílio preferencialmente com alimentação. Depois, para pagar contas e despesas domésticas. Com análise por grupo, o gasto com alimentação é de 61% entre os mais pobres e de 59% entre os com menor escolaridade. A pesquisa mais recente, de dezembro, mostrou que o auxílio era a única fonte de renda para 36% dos que se inscreveram para recebê-lo. 

Supermercados venderam mais durante a pandemia do que na última década

Alta de preços e insegurança financeira não impediram disparo nas vendas do setor

FONTE ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE SUPERMERCADOS

Diante das incertezas sobre a continuação do auxílio, cresce o cenário de insegurança alimentar para mulheres pobres, principalmente as negras e indígenas, mesmo com um gasto maior do brasileiro em supermercados. Vender mais não significa que mais gente está comendo, muito menos comendo melhor.

“A insegurança alimentar é um problema de gênero”, avalia Ana Carolina Feldenheimer, professora do departamento de Nutrição da UERJ que atuou como consultora na elaboração de diferentes políticas relacionadas ao tema no governo federal entre 2008 e 2015. “As mulheres negras e mais pobres são as que têm mais dificuldade para garantir a alimentação da sua família e isso é uma cascata: elas têm menos chances de emprego, menos recursos financeiros e, consequentemente, terão mais dificuldade de garantir boa alimentação para a sua casa”, completa.

Num cenário de fragilidade econômica e extrema vulnerabilidade social, como a pandemia, ações para segurar a alta dos preços dos alimentos e fortalecimento de políticas como restaurantes populares deveriam ter sido priorizadas, na avaliação da pesquisadora, mas houve omissão dos governos nesse sentido. Nem mesmo a merenda escolar, assunto que já faz parte da gestão das secretarias, contou com definições rápidas durante a pandemia. 

Durante pandemia, alimentação de crianças na rede pública foi interrompida | Foto: Prefeitura do Rio (2015)
Durante pandemia, alimentação de crianças na rede pública foi interrompida | Foto: Prefeitura do Rio (2015)

Com escolas fechadas, crianças da rede pública precisavam de um plano B para continuar a ter acesso aos alimentos e refeições oferecidas nas unidades de ensino. Mas uma ação que pudesse garantir a alimentação às crianças não foi implementada em âmbito federal, e cada município decidiu como fazê-lo de forma individual.

Alguns municípios conseguiram fazer cestas adequadas, com legumes e frutas, mas muitos compraram alimentos ultraprocessados.

Ana Carolina Feldenheimer, professora do departamento de Nutrição da UERJ 

Outros municípios, em vez de cestas, distribuíram cartões para compras de alimentos. De acordo com o Guia sobre Alimentação Escolar, a medida é ineficaz, pois o valor que um aluno “custa” para o Poder Público é mais baixo (R$ 0,36 por dia letivo), já que as compras são feitas em larga escala. A transferência de um valor próximo a este às crianças, individualmente, não supre a necessidade nem garante a alimentação saudável daquelas que estão em famílias sem outras fontes de renda.

Reflexos

O problema exposto, claro, é visto também por profissionais que atuam diretamente na saúde pública ou comunitária. Clarice Miranda, nutricionista que atende moradores na comunidade do Jacarezinho, zona norte do Rio de Janeiro, avalia que nos últimos seis meses houve aumento no número de atendimentos de pessoas jovens, principalmente mães, em situação de insegurança alimentar. Um caso recente, do início de fevereiro, é o de uma mulher de 21 anos que não consegue se alimentar idealmente porque deixa os alimentos para que a filha, de cerca de 1 ano, consiga fazer todas as refeições. O cardápio geralmente é macarrão. “A gente não escuta mais falarem tanto de  arroz e feijão, que são a base da alimentação brasileira. De proteína, você escuta frango, ovo, mas não carne vermelha.”

A situação dessa casa é classificada pela Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF/IBGE) como insegurança alimentar moderada: “redução quantitativa de alimentos entre os adultos e/ou ruptura nos padrões de alimentação resultante da falta de alimentos entre os adultos”. Se essa redução quantitativa atingisse a filha da jovem, elas estariam em situação de insegurança alimentar grave. 

A falta de arroz e feijão nos pratos, percebida por Miranda, também foi mapeada pela POF. De acordo com a pesquisa, em 15 anos houve redução de 52% na quantidade de feijão consumida anualmente por membros de famílias brasileiras. Em relação ao arroz, o índice foi de 37%. 

“No nosso trabalho, hoje, estamos de mãos atadas. O máximo que podemos fazer é orientar quanto a possíveis benefícios, se a família se encaixar nos critérios. Também acionamos as redes [como chamam os contatos com instituições ligadas ao tema] para incluir as famílias nas ações em que ONGs entregam cestas básicas, por exemplo. Mas não tem muito além disso. E dentro de cada realidade, tentamos encontrar soluções, mas geralmente o cenário é muito desolador”, explica a nutricionista.

Os números da POF/IBGE, a principal pesquisa sobre orçamentos dos brasileiros, com dados atualizados em 2018, mostram que mais de 84 milhões de pessoas no Brasil vivem em insegurança alimentar, de leve a grave. Destas, 59 milhões são negras ou indígenas. E mais de 24 milhões de famílias vivem em algum nível de insegurança alimentar, sendo que cerca de 66% têm como pessoas de referência, os chamados “chefes de família”, negros ou indígenas.

Entre todas as famílias com algum nível de insegurança alimentar, 32% são comandadas por mulheres negras ou indígenas. No universo de famílias comandadas por mulheres e na situação de insegurança alimentar, as chefiadas por negras ou indígenas são 68%.

Famílias chefiadas por mulheres e negros e indígenas são maioria com insegurança alimentar

Renda também é menor que a média total e diminui conforme insegurança aumenta

FAMÍLIAS EM (IN)SEGURANÇA ALIMENTAR POR GÊNERO E RAÇA

FONTE PESQUISA DE ORÇAMENTOS FAMILIARES (POF/IBGE)

Descentralização de políticas públicas

Em janeiro de 2019, logo no início do mandato do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), foi extinto um órgão fundamental para ajudar a resolver esse problema, com impacto direto na mesa dos brasileiros mais pobres: o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), criado em 1993, por Itamar Franco, revogado durante o mandato de Fernando Henrique Cardoso e reconstituído no início do Governo Lula. Por meio da Medida Provisória 870, que se converteu na lei 13.844/2019, Bolsonaro esvaziou o órgão ligado diretamente à Presidência da República e que era responsável por formular, executar e monitorar políticas públicas relacionadas à segurança alimentar e nutricional. 

Hoje, o trabalho feito pelo Consea, com o aval do governo federal, não existe mais. Mas organizações da sociedade civil, como o Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar, tentam continuar o trabalho de monitoramento e planejam uma nova conferência nacional sobre o tema — inicialmente prevista para agosto de 2020. Um evento em moldes similares era mantido pelo conselho extinto.

O Consea não tinha poder mandatório ou de legislação, não criava leis sobre alimentação, mas a falta do monitoramento e de ações coordenadas tem sido prejudicial. Daniela Canella, professora do departamento de Nutrição da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e pesquisadora sobre determinantes alimentares, avalia que o Consea era um dos principais elementos para garantir a segurança alimentar do brasileiro. 

Aquela situação complicada em relação à perda da alimentação escolar poderia ter sido apoiada mais de perto pelo Consea, que congregava pessoas de diferentes áreas e experiências, auxiliando na operacionalização da entrega da alimentação escolar correta nesse contexto.

— Daniela Canella, professora do departamento de Nutrição da UERJ

A pesquisadora também lista dificuldades para manter um nível de soberania e organização alimentar sem esse conselho específico: “Perde-se a referência central. Em cidades grandes, em alguma medida há mais dificuldade operacional, mas tem mais gente trabalhando. Na cidade pequena há mais facilidade de entregar uma cesta de legumes, por exemplo, mas provavelmente com menos gente formulando políticas sobre isso, leva-se mais tempo para construir uma estratégia eficiente”.

Órgãos como o Consea também fazem falta para iniciativas como a da nutricionista Clarice Miranda, que trabalha com as famílias da comunidade do Jacarezinho. “Se ele ainda existisse, faríamos denúncias e teríamos estratégias e ações para resolver situações de famílias nessa insegurança: incluí-las em programas de cesta básica, batalhar por renda mínima. Tudo nesse sentido de movimentação, que não temos mais.”

Movimentação

No contexto da pandemia, grandes redes de supermercados divulgaram ações pontuais de apoio à alimentação dos brasileiros. Mesmo com as denúncias de racismo enfrentadas após o assassinato de José Alberto Freitas, homem negro, em uma de suas lojas, a rede Carrefour divulgou longo relatório que detalha suas ações durante a pandemia. A primeira “frente de ação” foi a doação de alimentos e de máscaras de proteção e prevenção ao coronavírus. 

De acordo com o Carrefour, a ação foi feita em 22 estados brasileiros, número abaixo dos 26 estados em que a rede opera. Foram gastos, ainda de acordo com a empresa, quase R$ 9 milhões para auxílio a 900 mil pessoas. 

Ano marcado por assassinato em loja não impediu aumento do lucro do Carrefour | Foto: Wikimedia Commons
Ano marcado por assassinato em loja não impediu aumento do lucro do Carrefour | Foto: Wikimedia Commons

O Grupo Big, ex-Walmart, também divulgou ações semelhantes. Numa parceria com outras três instituições, afirma, foram distribuídas 250 toneladas de alimentos e cerca de 30 mil itens de higiene pessoal.

Mas fora deste contexto, ações pensadas e aplicadas para combater a insegurança alimentar brasileira são escassas. O Carrefour, por exemplo, tem uma “plataforma de combate ao desperdício”, mas não divulga qualquer informação sobre as ações de auxílio às “demandas dos consumidores por alimentação saudável, acessível e sustentável.” O Grupo Big se preocupa em “estimular uma cadeia de valor socialmente responsável”, mas não tem ações fixas ou reflexões públicas sobre o momento atual da fome no Brasil. 

Por outro lado, movimentos sociais, como dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST), promovem ações constantes de distribuição de alimentos. Durante a pandemia, o MST conseguiu distribuir ao menos 3.500 toneladas de alimentos em 24 estados brasileiros, graças à produção familiar, além de criação de novas hortas comunitárias para aumentar a quantidade de alimentos a serem doados.

Debate interno e externo

Enquanto isso, organizações da sociedade civil que pesquisam, debatem e agem sobre o tema denunciam que há um lobby silencioso feito pelos supermercados em detrimento da alimentação mais saudável, fato que impacta no ciclo de escassez de alimentos e insegurança alimentar. Uma dessas organizações é o Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), que visibiliza e discute cidadania no Brasil. 

Athayde Motta, diretor-executivo do Ibase, explica que a melhor forma de garantir soberania alimentar e reduzir os altos índices de famílias em situações de insegurança é fortalecer a produção local, e que esta não é uma preocupação dos supermercados.

Os supermercados fazem lobby. Não de forma explícita e ativa, mas fazem.

“As grandes redes não compram legumes do produtor local, mas ao mesmo tempo fortalecem a ideia da praticidade, que comprar no ar-condicionado é melhor do que ir na feira, pechinchar e comprar os orgânicos. E sutilmente os supermercados tiram a ideia dos ‘produtos de época’, muito comum nas feiras livres, porque eles suprem tudo o tempo inteiro, e um produtor local não consegue colher morangos o ano inteiro, por exemplo”, explica Motta.

Athayde Motta acredita que soberania alimentar no Brasil passa por fortalecimento dos produtores locais | Foto: Divulgação

A escolha por alimentos ultraprocessados em cestas básicas também contribui para a insegurança alimentar, pois para sair dessa categoria é preciso ter acesso a alimentos de qualidade. No contexto de pandemia, a escolha das autoridades também prejudica a soberania alimentar — enquanto fortalece as grandes redes.

“Quando uma prefeitura compra de um atacadão ou supermercado, além de alimentos de menor qualidade para as crianças [no caso das merendas], gera um impacto para além de 2021, pois descapitaliza os agricultores familiares: eles não vendem sua safra, têm problemas de escoamento e não vão ser recapitalizados para a próxima safra. Cria-se um outro ciclo que cria impacto no preço do alimento fresco”, afirma Ana Carolina Feldenheimer. Assim, portanto, as famílias mais pobres continuam comendo mal, pouco ou nada.

Preocupação dos supermercados

O relatório “Por trás das suas compras”, da Oxfam Brasil, mostra que a preocupação com trabalhadores e produtores rurais e locais também não é uma constante para grandes redes de supermercados. A ONG avaliou indicadores internos de Carrefour Brasil, Grupo Pão de Açúcar e Grupo Big em relação aos Direitos Humanos, cadeias de fornecimento e equidade de gênero. 

Gustavo Ferroni, coordenador de Setor Privado e Direitos Humanos da organização, avalia que um dos principais problemas que a Oxfam encontrou na análise é a falta de linearidade entre prática e discurso: “Os supermercados têm discurso de sustentabilidade forte, mas na prática é diferente. Quando divulgam suas ações nesse sentido, as informações são escassas. Mas sequer sabemos se eles realmente fazem. Não tem como fazer checagem das informações e ações divulgadas”.

Ferroni exemplifica que há uma demanda histórica para saber quem são os fornecedores das grandes redes, para mapear eventuais problemas na cadeia de fornecimento que sejam contrárias à garantia dos direitos humanos e denunciá-los às redes, para cessar transações. Mas os canais de denúncias, na realidade, são nulos. “Do que adianta ter um canal para denunciar um fornecedor problemático se não sabemos sequer para onde vão os alimentos que ele produz?”, questiona, em relação à falta de transparência da lista de fornecedores.

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Equidade de gênero é observada internamente mas supermercados não priorizam produtoras do campo Foto: José Fernando Ogura/ANPr

Uma outra conclusão do relatório é que, em relação à equidade de gênero, os supermercados se preocupam com seus processos internos de fomento à contratação de mulheres para cargos de liderança, mas o mesmo não acontece em relação à vida e ao trabalho das mulheres agricultoras, que estão na cadeia de fornecimento. E não é que a equidade nos altos cargos seja dispensável: o livro “Donos do Mercado” também mostra que, em 2018, havia 15 mulheres na “alta administração” do Grupo Pão de Açúcar, enquanto homens eram 62. Em cargos de “liderança”, que os autores chamam a atenção pela possibilidade de ser apenas líder de setor em uma das lojas, elas eram 32,3%.

Mas o relatório da Oxfam não tem registro de ação das grandes redes para lutar pela equidade de gênero fora do ambiente administrativo, principalmente em entender como é o panorama dentro da cadeia de fornecimento.

“Não tem como uma empresa dizer que não é um tema relevante, tanto na ponta da cadeia quanto na loja. É importante que uma empresa olhe para as mulheres nas cadeias de fornecimento, no sentido de mitigar riscos, mas também no sentido de fortalecer as produções das mulheres. Tem alguns pontos: a falta de investimento no campo, a mulher trabalhando, a diferença de pagamento, a questão de condição de trabalho, banheiro, maternidade. Como uma trabalhadora lactante vai se deslocar 30 quilômetros para trabalhar, como vai amamentar? Como isso é cumprido? Se não olharem, estão contribuindo para que uma situação desigual, injusta e violadora de direitos se mantenha”, avalia Ferroni.

E completa: “Existem compromissos, falam em questões de gênero e uma preocupação específica das mulheres e questões LGBT+, mas quando vai mais longe na cadeia de fornecimento, não há ações”. 

*Lola Ferreira é repórter e Flávia Bozza Martins é analista de dados da Gênero e Número

A Gênero e Número é uma empresa social que produz e distribui jornalismo orientado por dados e análises sobre questões urgentes de gênero e raça, visando qualificar debates rumo à equidade. A partir de linguagem gráfica, conteúdo audiovisual, pesquisas, relatórios e reportagens multimídia alcançamos e informamos uma audiência interessada no assunto. O conteúdo da Gênero e Numero é livre de direitos autorais e reproduzido aqui no site da Casa 1 com os devidos créditos.

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