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Pessoas trans e LGBT+ negras e indígenas estão mais expostas ao impacto da covid-19

Texto de Vitória Régia da Silva para a Gênero e Número

A carioca Edilene Junger, 38, teve sua renda completamente impactada pela pandemia causada pelo coronavírus. Artista freelancer, Junger trabalhava como modelista, grafiteira e fazia brincos para a venda. “A pandemia afetou todas as minhas áreas profissionais. Os brincos, eu vendia em festa e eventos lésbicos e, com a quarentena, isso afetou bastante. No meu trabalho com modelagem, tive que parar por conta da pandemia e porque eu faço parte do grupo de risco”, conta.

Por ser, como ela mesmo descreve, uma “mulher negra, gorda, favelada e lésbica”, a carioca trata na sua arte da interseccionalidade dessas identidades e do impacto disso na sua vida. Nas primeiras semanas, depois que foi decretado o isolamento social, Junger contou com ajuda de amigas, e agora se mantém com o auxílio emergencial de R$ 600, mas o valor está longe de ser suficiente.

Pessoas LGBT+s negras como Junger estão em uma situação de vulnerabilidade grave durante a pandemia causada pela covid-19, revela a pesquisa diagnóstico LGBT+ na pandemia do coletivo Vote LGBT+, que trata dos desafios dessa comunidade no contexto de isolamento social. Realizada entre os dias 28 de abril e 15 de maio, por meio de formulário online, a pesquisa recebeu mais de 9.000 respostas das cinco regiões do país.

Divulgado neste domingo, 28/6, data marcada pelo Dia do Orgulho LGBT+, o estudo aponta um índice inédito de vulnerabilidade LGBT+ em relação à covid-19 e revela que pessoas transgênero são as mais vulneráveis aos impactos do isolamento social, seguidas pelas pessoas pretas, pardas e indígenas. Os bissexuais aparecem em terceiro. Todos esses grupos estão na faixa de vulnerabilidade considerada grave.

“A população bissexual é invisibilizada dentro do movimento LGBT+ e tem algumas vulnerabilidades que não são retratadas por conta disso. Quando fizemos a análise, fiquei até surpresa em perceber, dentre esse grupo, o alto percentual de pessoas com renda menor ou igual a um salário mínimo. Eu imaginei que esse dado fosse um pouco mais próximo das lésbicas e gays, mas estava mais próximo das pessoas trans”, destaca Fernanda Fortes de Lena, demógrafa da Unicamp e integrante do coletivo Vote LGBT+. “A importância de ter feito essa pesquisa e encontrado esses dados nos ajuda a focalizar nesse grupo que está sofrendo vulnerabilidades e infelizmente é muito invisibilizado”, completa.

O Índice Vulnerabilidade LGBT+ em relação a covid-19 (VLC) é um índice que varia entre 0 e 1. Quanto mais próximo a 1, maior a vulnerabilidade ao novo coronavírus do grupo analisado. O VLC é aplicado a três variáveis: renda e trabalho, saúde, exposição ao risco.

A diversidade de identidade de gênero, raça/cor e orientação sexual aprofundam a condição de vulnerabilidade, que já é alta entre os grupos. Pretos, pardos e indígenas, por exemplo, possuem 22% mais chance de indicar falta de dinheiro como a maior dificuldade da quarentena do que brancos e amarelos.

“Enquanto pesquisadores, demógrafos e ativistas, sabemos das interseccionalidades da nossa comunidade e quando pensamos em fazer uma pesquisa, pensamos em mostrar as problemáticas, onde estão as maiores vulnerabilidades e evidenciar isso quantitativamente”, explica a demógrafa e pesquisadora.

Queda na fonte de renda

Segundo a pesquisa, a taxa de desemprego entre os LGBT+s foi de 21,6%, quase o dobro (12, 6%) do registrado pelo IBGE, no trimestre encerrado em abril, referente a toda a população brasileira. Quase metade (44,3%) das pessoas LGBT+s teve suas atividades totalmente paralisadas e 24% perderam emprego durante o isolamento social.

Uma das pessoas LGBT+s que perderam seus empregos devido à pandemia foi Carina Menezes, 34. Ela, que trabalhava há dois anos e meio em uma empresa de tecnologia e informação, foi dispensada do trabalho sobre a justificativa de queda no fluxo de caixa, no início de maio.

“Isso vai impactar muito na minha renda. Eu perdi meu plano de saúde, vou ter que pagar por fora, e essa era uma despesa que eu não tinha antes. Todas as minhas despesas fixas permanecem, e eu não tenho mais a certeza de uma renda fixa todo mês. Agora é juntar o que eu tenho e fazer isso render o máximo que eu conseguir enquanto procuro outro trabalho”, conta Menezes.

A cearense, que mora há quase 25 anos no Distrito Federal, conta que por ser bissexual tem que levar em conta sempre o quão diversa e segura é a empresa na busca por um novo trabalho: “Eu fico muito mais seletiva com relação às oportunidades que estou buscando. Faço uma pesquisa sobre a empresa para ter certeza que é um ambiente diverso e que tem uma filosofia parecida com a minha. Sou mais consciente das coisas que tenho que procurar para me sentir mais segura. Isso limita minhas oportunidades, que já são poucas”.

O estudo ainda revela uma situação de extrema vulnerabilidade desta população, já que 4 em cada 10 pessoas LGBT+ e mais da metade das pessoas trans (53%) disseram que não conseguem sobreviver sem renda por mais de 1 mês caso percam sua fonte de renda.

“São várias as questões que fazem com que essa taxa seja superior à população em geral. E, durante uma pandemia, esse cenário fica pior”, destaca Lena. “O principal fator não está relacionado à covid-19 especificamente, porque sistematicamente existe um problema de acesso ao mercado de trabalho para essa população. Isso está ligado a muitas questões, como o preconceito com pessoas LGBT+ que não estão dentro da heteronormatividade e ao fato de que essa população é ‘expulsa’ da escola devido à LGBTfobia e acaba não completando a educação formal para que possa acessar cargos e ser competitiva dentro do mercado de trabalho”. De acordo com a pesquisa, 3 em cada 10 dos desempregados estão sem trabalho há 1 ano ou mais.

A jovem travesti Uma Reis Sorrequia, 24, conhece bem essas barreiras de acesso ao mercado de trabalho. Graduanda em geografia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR), a pesquisadora, que já apresentou trabalhos acadêmicos fora do Brasil, está prestes a se formar e não conseguiu emprego como professora durante a graduação.

“Eu tinha plena consciência da violência transfóbica na empregabilidade, mas por um momento me enganei porque acreditei que, por ter construído um currículo internacional e aproveitado tudo que a universidade pode me oferecer, eu tinha rompido essa barreira e iria conseguir trabalhar como professora de geografia. Mas isso não aconteceu, e a ficha caiu”, conta Sorrequia.

Desde então, a jovem atua como arte educadora e mora há um ano em São Paulo. No momento que o isolamento social foi decretado, fazia pouco mais de um mês que tinha saído do trabalho em uma exposição com proposta de retorno em abril, além de ter dois contratos assinados para dar uma palestra e para fazer o programa de um curso por 1 ano.

“A pandemia chegou e simplesmente tudo foi suspenso. Dos trabalhos que estavam encaminhados, apenas um aconteceu de forma online. No primeiro momento, fiquei muito mal e temerosa porque voltar para a minha cidade (em Sorocaba), para o berço da minha família, significaria voltar para onde aconteceu toda a violência que eu sofri. Seria extremamente doloroso, por isso eu fiquei me segurando da forma que dava”, desabafa a arte educadora.

Avaliação do presidente e dos governadores

Os pesquisadores também questionaram os entrevistados sobre a atuação dos gestores públicos no combate à pandemia. Para 98,7% das pessoas LGBT+s entrevistadas, o desempenho do presidente Jair Bolsonaro é ruim ou péssimo. Essa avaliação é reflexo das ações do governo, já que as demandas da comunidade LGBT+ estão fora da pauta federal. Em 2019, foi extinto o Conselho de Combate à Discriminação LGBT+ , o Ministério da Educação cancelou um vestibular voltado para pessoas transgêneras e intersexuais, o Itamaraty baniu o uso da palavra gênero e de menções a direitos LGBT+ de documentos e o presidente retirou o incentivo ao turismo LGBT+ no Brasil do Plano Nacional de Turismo.

O foco da reprovação de políticas públicas está localizado na figura do atual presidente da República porque 74,7% da população LGBT+ que respondeu à pesquisa aprova os governos estaduais. A melhor avaliação estadual foi no Ceará: 53,23% das pessoas indicaram que o governador Camilo Santana está tendo ótimo desempenho durante a pandemia. Na região Sudeste, apenas o governador de Minas Gerais, Romeu Zema, teve uma avaliação péssima elevada: 34,3%.

“Não foi uma surpresa a avaliação do presidente, porque está de acordo com as atitudes dele. Esse resultado está condizente, mostra que a população LGBT+ está sofrendo com as atitudes desse governo e que estamos atentos a isso. Lembrando que essa é uma pesquisa online, e isso mostra que essas pessoas têm acesso à informação e estão informadas em relação ao que o governo tem feito diante da pandemia”, finaliza a pesquisadora.

A pesquisa completa você confere clicando aqui.

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